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porto velho, terça-feira 19 de março de 2024
Uma das grandes conquistas das democracias contemporâneas, herdeiras de pelo menos três séculos de disputas políticas, religiosas e culturais sangrentas, é exatamente o caráter central do Estado democrático de direito, sua capacidade de sustentar-se por si mesmo, sem necessidade de apelo a fundamentos pré-políticos, pré-culturais, pré-sociais e a-históricos. Dito de outro modo, uma das grandes conquistas da democracia consiste em sustentar-se sem necessidade de recurso à biologia e/ou à religião.
Com efeito, o grande núcleo de uma sociedade democrática, sua base vital, por assim dizer, é a diversidade, a diferença, o pluralismo, a alteridade. Aprendemos que somos radicalmente diferentes e de que, em assim o sendo, nenhuma concepção metafísico-teológica ou essencialista e naturalizada tem condições de organizar a sociedade como um todo, especialmente no que concerne às instituições públicas e ao seu contato com essa sociedade civil plural, diferenciada e heterogênea.
Além disso, sociedades contemporâneas – conforme podemos ver na filosofia, na sociologia, na educação, na teoria política hodiernas – são marcadas exatamente pela percepção de que tudo é histórico, cultural, político, profano e, assim, de que as instituições, os sujeitos sociais, as práticas e os valores intersubjetivamente vinculantes são desnaturalizados e, portanto, politizados. Aqui, religião e biologia não podem servir como recurso primeiro e último para a justificação das instituições e para sua relação com a sociedade civil exatamente pelo fato de que ambas pressupõem uma concepção de natureza humana que, por vir antes que a cultura e a política, simplesmente são imunes à politização, à crítica e à transformação, levando, pelo contrário, à imposição de formas de vida exemplares e à estigmatização de outras consideradas imorais ou não-naturais.
Por isso, o Estado democrático de direito, laico, secularizado e racionalizado, é e sempre será a melhor resposta a posições essencialistas e naturalizadas. O Estado democrático de direito, como disse de passagem logo acima, possui capacidade de justificar-se desde suas próprias premissas internas, uma vez que serve como um grande guarda-chuva normativo capaz de aglutinar os diferentes grupos sociais em uma unidade minimamente harmônica sem necessariamente comprometer-se com formas de vida particulares, próprias a um ou outro desses mesmos grupos radicados na sociedade civil.
E os valores constitutivos e norteadores do Estado democrático de direito são impessoais, imparciais, neutros e formais, consistindo em direitos e liberdades genéricos (direitos de primeira, segunda e terceira gerações) que levam à consolidação de processos amplos de inclusão, de participação e de reconhecimento. Aqui, não importa se você é cristão/ã, homem, mulher, homossexual, branco/a, negro/a etc. Importa exatamente que você seja sujeito de direitos.
Ora, o sucesso desta fórmula própria ao Estado democrático de direito, em nossas sociedades pluralistas, pode ser visto de modo direto e pungente no fato de que toda a violência etnocida e fundamentalista baseada na religião e na biologia foi minimizada ou até erradicada, em muitos contextos. Não se mata mais por religião, não se deve mais matar por gênero e sexualidade, não se deve mais organizar a sociedade em castas, não se pode mais praticar racismo à luz do dia e publicamente. Por meio desses exemplos, quero enfatizar exatamente a grande conquista civilizatória e humanística que é esse modelo de Estado democrático de direito independente da religião e da biologia, laico, profano, secularizado e racionalizado.
Nesse sentido, o presidente Jair Messias Bolsonaro precisa ser lembrado – porque parece esquecer-se com uma frequência cada vez mais preocupante – que, sim, o Estado é laico, mas também o presidente é e deve sempre ser laico! Ele representa não apenas seu eleitorado específico, mas toda a sociedade, inclusive os grupos que lhe são contrários e que, não obstante isso, precisam ser respeitados e promovidos nas suas singularidades. A cruzada contra homossexuais e indígenas, que nosso presidente teima em assumir sempre e sempre, não faz o menor sentido a um Estado que é laico e que universaliza direitos e procesos de inclusão, de participação e de reconhecimento. Na verdade, essa cruzada chega a se aproximar perigosamente da ilegalidade.
O fato é que essa postura de enfrentamento e de eliminação dos supostos inimigos está se tornando uma regra geral em nossas instituições públicas, contribuindo para a solidificação de uma situação de instabilidade social que ameaça seja a efetividade das instituições, seja a independência do Estado democrático de direito frente às posições metafísico-teológicas, seja, por fim, o caráter vinculante de valores tão básicos a uma democracia quanto o são o reconhecimento, a reciprocidade, a tolerância e o repúdio à escravidão e ao racismo.
Uma lição básica de história, que todos/as precisamos aprender, está em que os grandes genocídios dos últimos 500 anos foram causados fundamentalmente pela afirmação da religião e da biologia na política, da religião e da biologia como política. Os não-cristãos, as mulheres, os/as homossexuais, os/as negros/as e os/as indígenas, apenas para citar alguns exemplos, foram massacrados exatamente com base nesse ideal de objetividade forte dado pela religião e pela biologia. E os grandes regimes totalitários do século XX – nazismo, fascismo, comunismo, ditadura militar – tiveram por base um misto de racismo biológico e de fundamentalismo religioso. Essa constatação por si só deveria nos levar a recusar de modo peremptório afirmações de nosso presidente, como essa de que, embora o Estado seja laico, o presidente é cristão, bem como de que ele governa para a maioria, e não para minorias supervalorizadas ou para xiitas ambientais, ou mesmo quando se celebra a memória de um torturador e assassino, afirmado agora como um grande herói nacional. São situações incompatíveis com uma democracia pluralista, em que o Estado democrático de direito é nossa grande base normativa.