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    porto velho, sexta-feira 19 de abril de 2024

Instituições públicas devem fomentar a confiança, a reciprocidade e otimismo sociais, e não o ódio de classe!


Por Leno Danner

05/11/2019 08:14:56 - Atualizado

Governar na e para a democracia é uma arte difícil. Gerir-se uma multidão, profundamente dividida entre si, é uma tarefa ingente e muito tensa, necessitando não raro uma postura de equilíbrio, de igual representação e consideração de interesses, bem como de respeito e de consideração às oposições. As teocracias, as ditaduras e os totalitarismos não regimes por excelência desequilibrados, no sentido de que não precisam de qualquer mediação e nem de práticas de justificação do poder à pluralidade; não por acaso, recorrem à força, à violência material e à manipulação simbólica da coletividade e, quando podem, praticam o assassinato planificado dos opositores – foi assim com Hitler, com Mussolini, com Stálin; foi assim nas ditaduras militares que tivemos na América Latina. Mas uma democracia tem de constituir-se em outras bases e trilhar outros caminhos quando a questão é exatamente a gestão e a participação da multidão no e pelo poder.

Na filosofia política contemporânea, que emerge como contraponto ao totalitarismo e ao fascismo, aprendemos que somente uma perspectiva imparcial, impessoal, neutra e formal do poder, correlacionada ao respeito ao Estado democrático de direito, à separação e ao contrapeso entre os poderes e fundada na universalização dos direitos humanos, pode garantir uma gestão e uma orientação minimamente equilibradas e pacíficas de uma sociedade complexa e multicultural como o é uma democracia contemporânea. Nesse aspecto, o núcleo central do poder democrático, que determina todo o seu sucesso ou seu insucesso, consiste em garantir-se a universalização e a efetividade dos direitos humanos para todos os grupos sociais e indivíduos. Em primeiro lugar, portanto, todos e cada um precisamos sentir-nos valorizados e tratados em igualdade de condições pelas instituições públicas; elas precisam chegar a todos e para todos, garantindo-lhes condições básicas para uma vida digna e produtiva, com sentido, felicidade e trabalho, em que todos e cada um nos engajamos crítica e criativamente no seio da sociedade, da multidão. A primeira falha de uma democracia – que no longo prazo vai custar-lhe muito caro – consiste na não-universalização e na não-efetividade dos direitos humanos a todos, para todos. Exclusão, marginalização e abandono levam à desagregação social, dos incluídos e dos desamparados. Daqui vem o maniqueísmo que acaba com a ideia de que uma democracia é uma sociedade de direitos e de mediações recíprocas, em que ninguém fica abandonado à própria sorte.

Em segundo lugar, temos a separação entre poderes, que permite o contrapeso e a moderação recíprocos, sempre tendo o Estado democrático de direito por norte paradigmático e o judiciário como sujeito último de uma democracia, de modo que a política – tanto o legislativo quanto o judiciário – utilizem, para usar um termo do filósofo político Jürgen Habermas, a linguagem do direito como cerne de seu desenvolvimento e de sua dinâmica cotidianos. Ou seja, o respeito e a promoção do Estado democrático de direito e a centralidade do judiciário – centralidade significa seu distanciamento e sua separação em relação à política e aos grupos políticos – permitem que haja sempre condições de se controlar aquelas perspectivas políticas neofacistas que vivem no horizonte de uma democracia e que têm como cerne de sua atuação o desrespeito sistemático e, ao fim e ao cabo, a supressão seja do Estado democrático de direito, seja das inúmeras mediações institucionais e sociais por meio das quais de constitui e se dinamiza uma democracia, a primeira delas o judiciário. As instituições e o direito, profundamente alicerçados na democracia, no pluralismo, nos direitos humanos e em uma perspectiva sociocultural secularizada, profana e laica, ainda continuam sendo nosso aprendizado civilizacional mais básico e a fronteira primeira e última contra a barbárie. Nesse sentido, toda vez que o direito se politiza ou recorre novamente a fundamentos pré-políticos próprios à biologia e à teologia, ele não apenas viola essa sua fundamental separação em relação às comunidades morais particulares que vivem em uma democracia, mas também derruba por terra os direitos humanos e sua condição como base última a regular os demais poderes. Quando o direito se politiza, a política mais rasteira, da luta por poder pura e simples em que o inimigo precisa ser derrotado por quaisquer meios, inclusive por meio da subversão do direito, acaba tomando a dianteira e submetendo o direito às suas intenções e dinâmicas maquiavélicas. Ora, insegurança jurídica leva a uma situação de instabilidade permanente e pungente das instituições democráticas, e a consequência disso é que o neofascismo emerge e se consolida em cheio, apelando a deus e à biologia e à luta do bem contra o mal como o mote a partir do qual ele se justifica como a salvação e a verdade, e por meio do qual ele esmaga seus inimigos, na maior parte das vezes com a complacência dos próprios operadores do direito, quando não com sua ajuda.

Em terceiro lugar, a democracia precisa de instituições públicas protagonistas em termos de inclusão, participação, reconhecimento e promoção da vida social. Elas devem fomentar virtudes artificiais como a tolerância, a reciprocidade, o pluralismo, os direitos humanos, e precisam ser as primeiras a realizá-las efetivamente. Com efeito, das e pelas instituições públicas são construídas as principais atitudes e os mais fundamentais exemplos da civilidade democrática, ou no que tange à destruição dessa mesma civilidade democrática. É o seu protagonismo que permite formular-se políticas públicas amplas que enfrentam situações de marginalização, de exclusão e de violência; é por meio de sua atuação frente ao pluralismo democrático que podemos encontrar motivos, práticas e valores pedagógicos que nos permitem superar o racismo, o fundamentalismo e o totalitarismo, instaurando os direitos humanos como o substrato básico de uma democracia, seu núcleo normativo, político, educacional, cultural, institucional. Quando as instituições públicas democráticas falham em garantir a efetividade dos direitos humanos, a realização da dignidade humana, fomentando, ao contrário, seja o descaso público, seja mesmo o maniqueísmo político e o ódio sociocultural às diferenças, elas quebram a reciprocidade, a confiança e o respeito comuns que os grupos sociais devem assumir uns para com os outros, uns frente aos outros em uma democracia. Aqui, a morte, o ódio e a violência se tornam os valores e as práticas centrais, e a reciprocidade, o respeito e a confiança entre os cidadãos e os grupos sociais e destes para as instituições são simplesmente anulados, uma vez que os diferentes em relação a mim estão basicamente errados, são maus, ameaçam a luz da verdade e da salvação que eu proponho, devendo, por isso mesmo, ser destruídos de todos os modos possíveis.

Como dizia longo no início, não é fácil coordenar, gerir e orientar a multidão em suas várias diferenciações internas. É por isso que as instituições públicas democráticas, que são a base de uma sociedade democrática estável e dinâmica, precisam assumir acima de tudo, contra tudo e todos, se for o caso, a universalização dos direitos humanos, a efetividade do pluralismo ou multiculturalismo e o caráter basilar do Estado democrático de direito. Tais valores possibilitam que todos possam ser representados equitativamente, que todos tenham seus direitos e suas aspirações realizados, levados em conta e, principalmente, que nenhum indivíduo ou grupo social, que nenhum partido político e liderança política atentem contra a democracia, isto é, contra os direitos humanos, o pluralismo e o Estado democrático de direito. A democracia vive disso e somente floresce por meio dessas suas três bases. A história nos ensina que violação sistemática dos direitos humanos, do pluralismo e do Estado democrático de direito nos levam diretamente ao totalitarismo, ao fascismo, à ditadura e, portanto, à destruição da sociedade, ao assassinato em massa.


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