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porto velho, terça-feira 19 de março de 2024
Lula é incontestavelmente uma liderança política singular diante do amplo espectro de políticos brasileiros, podendo ser situado facilmente como um verdadeiro estadista ao lado, talvez até acima de nomes como Marechal Deodoro da Fonseca, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Lula é uma liderança política singular pelo fato de que consegue motivar, amalgamar e conduzir os anseios, as ideias e as ações de milhões de pessoas, servindo-lhes de exemplo e a outras sociedades – não por acaso, o cientista político André Singer chama de lulismo esse fenômeno de liderança carismática e popular (embora o conceito de lulismo também tenha outros significados que não me interessa para este momento); Lula é um estadista, talvez nosso maior estadista, na medida em que efetivou três pilares básicos de qualquer perspectiva de modernização social, a saber, ênfase em um capitalismo de Estado de caráter endógeno em termos de industrialização, fomento à educação básica e à ampliação da educação superior e promoção de programas de equalização de renda e de integração social. Como não me canso de dizer, esse é o núcleo, o único núcleo de qualquer sociedade que se queira efetivamente desenvolvida, inclusiva e justa – e esse é o presente e o futuro da modernização ocidental.
Nesse sentido, Lula faz muito, mas muito bem à democracia brasileira porque institui exatamente a discussão política sobre a qualidade das reformas e das transformações que ele e seus adversários fizeram – e mesmo do que não fizeram, do que ainda temos para se fazer. Para se ter uma ideia da gravidade da situação brasileira, estamos vivendo uma condição de desemprego que afeta 13 milhões de pessoas e uma condição de subemprego que afeta outras 17 milhões. Portanto, 30 milhões de trabalhadores de um total de 109 milhões de trabalhadores estão ou desempregados ou trabalhando de modo precário e pouquíssimo valorizado. No mesmo diapasão, o trabalho informal – sem carteira assinada, sem garantias empregatícias, sem direito a férias e FGTS, sem pagamento de impostos – ultrapassou o trabalho formal pela primeira vez durante décadas, um recorde que cabe a Temer em primeiro lugar e a Bolsonaro em segundo. Metade da população brasileira entre 24 e 64 anos não possui o ensino médio concluído, o que também mostra gargalos profundos em nossa educação, em particular o fato de que não conseguem acessar o capital cultural necessário para a sua mobilidade social e para a sua qualificação a postos de trabalho mais valorizados de nossa economia.
Diante de tudo isso, inclusive do baixíssimo crescimento econômico que caracteriza o Brasil hodierno, o que faz nosso presidente Bolsonaro? Utiliza-se do mesmo comportamento enquanto antigo deputado do baixo clero, com muito palavrório violento e irracional – agora amplificado por meio das redes sociais, e não apenas na tribuna do legislativo – e de conflitos tanto contra adversários quanto também contra correligionários. Lula vem salvá-lo ou enterrá-lo de vez, porque recoloca a discussão política como o cerne do Estado, do executivo, do legislativo, como sua atitude e preocupação centrais. Inclusive, neste caso, não bastará mais a Bolsonaro o uso de fake news para manter apoio popular e a “unidade” política de seus correligionários. Agora, Bolsonaro terá de mostrar trabalho ou afundar-se de vez, porque seu mais ilustre antagonista está solto e já mostrou que a militância política lhe continua como sua vocação mais fundamental.
Considero muito importante o fato de que Lula solto traz novamente para a ordem do dia o nosso tema sempre central, o nosso desafio mais fundamental, que é a questão social e, nesse caso, que é a imbricação entre Estado, sociedade e economia. Desde Temer, estamos acostumados a sucessivos reveses no âmbito dos investimentos públicos em inclusão social, na modificação radical de nossa excelente legislação trabalhista e, por fim, agora, na questão da previdência social. Tivemos, inclusive, de Temer a Bolsonaro, a adoção direta e pungente de uma perspectiva de desvalorização do trabalho e dos trabalhadores, que foi desde a terceirização irrestrita e ampla para o fato de que, agora, a contratação de trabalhadores pode se dar por meio de não obrigatoriedade do recolhimento do FGTS e de contribuições previdenciárias por parte dos patrões, inclusive do fato de que o próprio empregado, conforme afirmou Bolsonaro há poucos dias, tem de escolher entre trabalhar sem direitos ou permanecer desempregado com direitos. A consequência disso: a informalidade ampla, o desemprego acentuado. Mas não existe esse “ou, ou”. E não é assim que funciona a correlação de capital e trabalho. Aulas básicas de economia política poderiam ter alertado para isso. De todo modo, tais reformas somente foram possíveis pelo impeachment e pela anulação política de Lula, que minou a liderança política mais fundamental de nossas esquerdas.
Lula é o outro lado da moeda relativamente a Temer e a Bolsonaro, relativamente a essas situações. Seu discurso, como vimos, gira em torno a desenvolvimento econômico, emprego com direitos e educação básica e superior ampla. Suas falas apontam para a necessidade que as pessoas têm de trabalhar e estudar para poderem comer, criar suas famílias, galgar posições sociais, comprar sua casa e seu carro, viajar etc. Note-se a diferença de discurso relativamente ao nosso presidente Bolsonaro, cuja tônica continua sendo bala, Bíblia e comunismo. Enquanto Lula ficou preso, portanto, Bolsonaro radicalizou seu discurso, agora como presidente, além de simplesmente não ter governado em termos de uma política estatal de investimentos na economia, no social e na educação. Ademais, foi inimigo da cultura e não se cansou em colocar a Bíblia acima da constituição e da própria cultura democrática. Não poderá mais fazer isso sem um altíssimo preço a pagar, a saber, o suicídio político. Agora, ele tem o exemplo de Lula como contraponto. Certo ou errado, Lula terminou seu segundo governo com menos de 5% de desemprego, um padrão somente alcançado por sociedades europeias, em particular a Alemanha e os países nórdicos. Em nenhum outro lugar isso existiu desse modo neste século XXI.
Também não é correto dizer que Lula levará ao acirramento da divisão social que existe, porque esse acirramento é causado exatamente pelo tipo de comportamento assumido por Bolsonaro. Como pudemos ver desde o início do seu governo, o velho e viciado deputado do baixo clero insiste na utilização da desinformação, em geral marcada pelo ódio, pela promoção de instintos primários às pessoas, e na distorção permanente da realidade, ou seja, o enfrentamento do comunismo como tática de governo. Felizmente, para alívio de todos nós, isso também já não poderá mais servir como base de governo e de apoio popular, especialmente em um momento em que a economia não se dinamiza, o emprego decresce e a qualidade de vida das pessoas diminui cada vez mais, ao ponto de estarmos com os 13 milhões de indivíduos vivendo na extrema miséria.
Agora, poderemos novamente discutir projetos de governo, investimentos públicos no social, políticas públicas de inclusão, planejamento educacional. Agora poderemos contrapor lideranças políticas, agora podemos enquadrá-las e escaloná-las em termos de melhor ou pior. Agora podemos pensar no que devemos fazer, no que o governo deve fazer. Agora, enfim, podemos saber se Bolsonaro tem cacife para governar melhor que Lula, para fazer pelo país o que Lula fez (ou aquilo que Lula não fez). Como disse acima, Bolsonaro finalmente terá de começar a trabalhar, e precisará efetivamente arregaçar as mangas para tirar esse atraso de quase um ano sem um trabalho sério em termos de desenvolvimento econômico e inclusão social. Que Lula continue solto e que tenha, inclusive, seus direitos políticos restabelecidos. Na verdade, o restabelecimento de seus direitos políticos antes de tudo é algo necessário e urgente diante de uma atuação viciada entre MPF, PF e Sérgio Moro, conforme relevado pelo The Intercept Brasil, através da Vaza-Jato; e também é o fecho de abóboda para retomarmos a boa e velha política que jogamos fora apressadamente, ou seja, a discussão e a disputa em torno a projetos políticos de Estado, de nação, de desenvolvimento, de inclusão, de justiça. Lula livre e com seus direitos políticos de volta!
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