Fundado em 11/10/2001
porto velho, terça-feira 19 de março de 2024
O processo de desconstrução – logo à frente definirei como um verdadeiro processo de linchamento público – realizado em diferentes mídias e por uma multiplicidade de sujeitos políticos contra Carlos Alberto Decotelli se deveu à prestação de informações não-verdadeiras e à suposta mentira em relação aos títulos acadêmicos, ou ao fato de ele ser nomeado como ministro da educação pelo presidente Jair Messias Bolsonaro? As informações mal prestadas eram base suficiente seja para o processo de linchamento público, seja para o consequente impedimento de sua nomeação como ministro da educação? Ademais, o fato de ser um homem negro influiu ou não na intensidade com que essa desconstrução pública foi levada a efeito? Gostaria, para começo de conversa, que cada um/a que ler este texto respondesse com sinceridade à questão.
Em primeiro lugar, algumas situações mínimas poderiam nos permitir sermos mais abertos à escuta das justificações do referido professor. Todos sabemos como é difícil preencher um Currículo Lattes, especialmente para quem não tem muita familiaridade com os recursos digitais; todos entendemos seja o significado de buscar uma formação em nível de graduação e em nível de pós-graduação e não ter dinheiro para concluí-la, seja mesmo a diferença entre a conclusão de todos os créditos de doutorado e a defesa da tese de doutorado. Ademais, todos sabemos o significado de publicar capítulos de livros em coletâneas ou mesmo de organizar-se coletâneas com colegas e nem sempre mencionar, às vezes por desconhecimento, a autoria completa – existe até uma forma de citação em que dois ou mais autores são subsumidos pelo termo et al; e, finalmente, todos sabemos que as ministrações de cursos e disciplinas de curta duração em outras instituições são citadas no Currículo Lattes como uma forma de vínculo empregatício, mesmo que sequer tenham sido pagos e que este vínculo efetivamente tenha existido. Como não somos capazes, ao estilo do Deus cristão, de ler as mentes dos outros/as e como as informações prestadas não são totalmente falsas e muito menos aberrantes, poderíamos ter ouvido mais ao professor Carlos Alberto Decotelli, ao invés de simplesmente destruí-lo em termos simbólico-normativos – inclusive porque o processo jurídico de aferição das informações e de julgamento delas sequer foi iniciado.
A própria questão do plágio pode ser efetivamente entendida como um descuido no que diz respeito às citações. Eu, por exemplo, já encontrei uma passagem em texto de Jürgen Habermas que é absolutamente igual a uma passagem em texto de Claus Offe, e sem qualquer referenciação, inclusive porque, no caso, era uma citação integral – Habermas copiou de Offe? Offe copiou de Habermas? Isso não impediu os inúmeros prêmios recebidos por ambos e sequer foi motivo para a destruição de sua biografia como um todo. Tenho vários alunos que, por inexperiência de pesquisa, por imaturidade, reproduzem passagens inteiras, pequenas ou longas. Ademais, tive um colega de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS que em sua tese copiou excertos de outro autor sem referenciá-lo; e recentemente vimos um doutor em filosofia brasileiro que publicou um artigo acadêmico com grandes excertos copiados de outra pesquisadora brasileira. No primeiro caso, na surdina, foi cassado o título de doutorado do referido professor; no segundo, uma breve nota na revista sobre o plágio e a exclusão do artigo. Ninguém utilizou as redes sociais e a mídia digital para solicitar a demissão dos professores de suas instituições e sequer para fazer piadinhas sem graça com uma situação que ainda está por explicar tanto por Carlos Alberto Decotelli quanto por seus críticos puristas, que já o condenaram de antemão. Exponho isso para perguntar novamente: era necessário esse processo de destruição pública da biografia como um todo de Carlos Alberto Decotelli? Era necessária essa condenação prévia que a mídia adoecida e grupos sociopolíticos os mais diversos, que perderam a noção de bom senso com seu dualismo-maniqueísmo político – os rigoristas de plantão, em geral falsos rigoristas –, realizaram contra ele?
Repito a pergunta: Carlos Alberto Decotelli foi desconstruído publicamente por ter “falsificado” informações e por ter “plagiado” seu trabalho acadêmico de mestrado (lembrando que existe processo jurídico, presunção de inocência, direito à defesa e ao contraditório e trânsito em julgado, para que se tenha uma ideia do que se está fazendo com o professor), ou por ser aliado do presidente Jair Messias Bolsonaro? Eu faço essa pergunta não apenas para chamar à sensibilidade moral e ao óbvio ululante de que há que se fazer um processo isonômico para se decidir, caso isso seja necessário, pela culpabilidade ou não de alguém. Eu faço essa pergunta também e principalmente por outro motivo que me incomoda muito na esquerda teórico-política de um modo geral e na intelligentsia específica às ciências humanas e sociais em particular (e, nela, na própria filosofia).
Primeiramente, a esquerda teórico-política, essa que em geral julga assumir todo o conteúdo normativo de uma democracia pós-tradicional, pós-metafísica ou pós-convencional e, portanto, que julga em grande medida centralizar, monopolizar e dinamizar em si mesma e desde si mesma todos os processos de crítica social, de resistência cultural, de luta política e de práxis pedagógica emancipatórias – uma versão aparentemente profana (mas na verdade profundamente escatológica, missionária e messiânica) do “E conhecereis a verdade e a verdade os libertará!”. Nossas referências normativas mais tradicionais, em termos de esquerda teórico-política, ou foram, pelos padrões de hoje (direitos humanos, Estado democrático de direito, pluralismo, diversidade), líderes fascistóides de massa, racistas empedernidos, machistas e homofóbicos teimosos e profetas justificadores de múltiplos holocaustos salvíficos, missionários, messiânicos e vocacionados, ou foram mesmo niilistas inconsequentes que jogavam fora como um todo as potencialidades e os problemas da modernidade em nome de seu desespero pessoal de cunho antissistêmico. Por exemplo, Marx foi um grande teórico da crítica social, obviamente, mas a utilização de suas ideias pelo comunismo soviético (ademais calcado na eugenia e no darwinismo social – portanto, um comunismo racista-racializado), desde a mediação em termos de militância política dada a essas ideias por Lenin, Trotsky e Stálin, implicou em mais mortes que o nazismo alemão foi capaz de fazer, bem como em uma sociedade de controle panóptico que ainda hoje está para ser superada em termos de consistência e meticulosidade. Nietzsche foi um mestre da suspeita e da desconstrução, mas sua vontade de poder contra a moral de rebanho, sua ética aristocrática contra a massa normalizada e a lógica dos fracos foi assumida depois, e a partir de seu douramento eugênico e darwinista, por nada menos que Hitler e o nazismo. Hegel foi um grande filósofo da modernidade (europeia, claro) como autoconsciência do tempo presente e como presente, enquanto correlação de socialidade e de subjetividade desde uma consciência historicista, mas Hegel é profundamente eurocêntrico-colonialista-racista. Kant é o patriarca da correlação de cosmopolitismo ético, de contratualismo jurídico-político e do rigorismo moral, fundada em um ideal antropológico em que a razão era a base suficiente para a objetividade do sentido e da justificação, mas Kant tem como núcleo uma caricatura profunda, própria dos relatos fictícios de viajantes europeus às colônias, das sociedades e dos povos não-europeus, situação que, aliás, é uma constante na filosofia europeia como um todo – para alguém que vê a razão como produtora da e condutora à verdade, portanto, a filosofia europeia é bastante iludida quanto às suas capacidades e em termos de consistência de suas crenças, mas assim o é porque compartilha traços profundos de um dualismo-maniqueísmo interno. Por que, nesses casos, ninguém destruiu as biografias dessas pessoas e, na verdade, por que continuam sendo utilizadas como paradigmas, ao ponto de termos sociedades filosóficas destinadas à presentificação permanente do passado, quando não ao saudosismo de gestos e termos curiosos (como o passeio das seis, o espírito do mundo, o cantar do galo na madrugada, o ser ou não ser) e de ideias supostamente fundamentais para nosso tempo? Por que, ademais, ninguém liga essas filosofias ao etnocídio e ao genocídio indígenas e negros, ao racismo estrutural próprio ao colonialismo, ao machismo, ao sexismo, à homofobia, à transfobia, os quais elas ou assumiram de modo normalizado, ou justificaram diretamente?
É nessa hora que todos dirão: “É preciso ler Marx, Nietzsche, Hegel, Kant e qualquer outro europeu em contexto, assumir o que é bom e recusar o que é mau, atualizar. Ademais, é necessário saber o que de fato Marx, Nietzsche, Hegel, Kant etc. disseram e o que os outros disseram que eles disseram ou consideram que eles deveriam ter dito”. Concordo em gênero, número e grau, com algumas ressalvas. Porém, se isso for verdade, por que não se deu esse direito ao próprio Carlos Alberto Decotelli? E, aliás, por que em geral as ciências humanas e sociais, em particular a filosofia, tomam o partido por um maniqueísmo-dualismo profano e à esquerda, esquecendo-se que não são apenas os fascistas-fundamentalistas-racistas que são efetivamente fascistas-fundamentalistas-racistas e de que, portanto, também as ciências humanas e sociais e a filosofia, embora afirmadoras do pluralismo, reproduzem em muitas ocasiões uma perspectiva dualista-maniqueísta que conduz à segregação, à exclusão e à simplificação dos adversários e, antes, a uma cegueira sobre si mesmas? Lembro novamente uma polêmica sustentada há pouco tempo por bolsonaristas e atacadas por historiadores e filósofos: o nazismo é de direita, situação negada pelo bolsonarismo e afirmada pela esquerda. O nazismo é de direita, obviamente. Mas e o estalinismo? O estalinismo é de esquerda – terá a esquerda coragem de dizer isso e de assumi-lo com consequência? E a Revolução Cubana e o regime venezuelano de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro? São de esquerda – terão nossos partidos e lideranças de esquerda coragem para dizer isso publicamente? Nesse sentido, se criticamos o fascismo de Hitler, não teríamos de criticar o fascismo estalinista? Chama-se coerência metodológica este princípio tão importante para a estabilidade da democracia, a condição basilar para a segurança jurídica e para a validade dos direitos fundamentais em comum, um princípio que também é importante para o caráter das pessoas. “Mas somos falhos, nem sempre somos e nem sempre conseguiremos ser completamente coerentes em termos metodológicos”. Concordo mais uma vez e, por isso, por causa disso, é que não se pode tolerar o dualismo-maniqueísmo fascista e, como consequência a hipocrisia moral que justifica uma militância excludente e destrutiva dos adversários, sendo que isso, aqui, se refere exatamente à esquerda teórico-política e às ciências humanas e sociais, à filosofia em particular. Porque a lógica do dualismo-maniqueísmo fascista é a lógica da exclusão: os diferentes não podem conviver juntos, os opostos se destroem reciprocamente, motivo pelo qual devo destruir meu inimigo por qualquer meio, afinal estou absolutamente correto.
Note-se que estas observações objetivam chamar a atenção para o fato de que o dualismo-maniqueísmo bolsonarista não é o culpado exclusivo pela crise da nossa democracia – das instituições para a sociedade civil, do direito para a política e desta para a cultura democrática – em termos de consolidação de uma perspectiva anti-moderna, anti-modernizante, antissistêmica, anti-institucional e anti-jurídica que exige a derrubada do Estado democrático de direito, que viola direitos fundamentais e que fragiliza a linguagem do direito positivo como se fossem meros produtos de classe, luxos para a militância salvífica. Repito: Bolsonaro bebeu dessa onda antissistêmica, isto é, anti-moderna e anti-modernizante, anti-institucional e anti-jurídica, mas já muitos de meus professores e outros tantos teóricos que li falavam em revolução armada, em luta de classes, e isso desde essa perspectiva dualista-maniqueísta. Ademais, Bolsonaro bebeu desse dualismo-maniqueísmo anti-moderno e anti-modernizante, anti-institucional e anti-jurídico, de atuação infralegal, mas quem pode dizer que certos grupos à esquerda teórico-política e no contexto das ciências humanas e sociais simplesmente não assumem e, portanto, legitimam dualismos-maniqueísmos à esquerda, os quais conduzem à incoerência teórica, à hipocrisia moral e a uma legitimação direta exatamente do fascismo contra os inimigos e a tolerância e a complacência contra os amigos, instituindo desde a esquerda essa atuação antissistêmica, anti-institucional e anti-jurídica que se acusa sempre à direta?
Luís Inácio Lula da Silva usou até cansar – e ainda usa – a linguagem do “nós versus eles”, do “eles versus nós”. Jornalecos como Brasil 247 e Diário do Centro do Mundo, com as honrosas exceções de Teresa Cruvinel e de Helena Chagas, as quais medem cada palavra dita, ficam ressentidos com a acusação, por Ciro Gomes, de serem fascistas à esquerda, mas basta ler suas páginas para perceber que esse dualismo-maniqueísmo simplificador legitima uma guerra de vida e de morte contra os inimigos e a tolerância e a aceitação dos aliados, com um verdadeiro linchamento moral desses mesmos “inimigos”. É muita incoerência teórica e hipocrisia política e são estas que conduzem a uma situação ampla de fragilização da democracia, de solapamento dos direitos fundamentais, de desrespeito ao pluralismo e, finalmente, de atitude antissistêmica contra as instituições jurídico-políticas. Claro que a atitude desses jornalecos se assemelha à postura de outros jornalecos próprios a uma mídia de massas, como Veja, Record e Globo, entre outros, que simplesmente arrasaram com a institucionalidade e a legalidade no contexto do impeachment de Dilma, ramificando-se inclusive à própria Operação Lava-Jato, que somente conseguiu assumir uma perspectiva anti-institucional, anti-jurídica e antissistêmica e uma atuação infralegal desde dentro das instituições por meio de um personalismo jurídico-político dualista-maniqueísta que foi correlato, na sociedade civil, à criação e ao estímulo de uma massa-milícia digital-social de aclamação, ela mesma de cunho antissistêmico e de atuação infralegal. Na guerra salvífica do dualismo-maniqueísmo, tudo pode contra o adversário e a coerência fica para outro momento. É nessas horas que me lembro de Aimé Césaire, no seu maravilhoso “Discurso sobre o colonialismo”: de tanto praticarmos o fascismo contra os outros, acabaremos normalizando-o ao ponto de praticarmos contra nós mesmos, perdendo qualquer coerência metodológica, qualquer sensibilidade moral e qualquer senso de crítica pessoal-grupal.
Carlos Alberto Decotelli é a mais recente vítima dessa incoerência teórica e dessa hipocrisia político-moral que é fundada, legitimada e dinamizada pelos múltiplos dualismos maniqueístas que estão por trás das várias ramificações e manifestações do fascismo e, por isso, não espanta que seu linchamento público tenha sido justificado por ser aliado de Bolsonaro e, ademais, tenha sido intensificado por ser um homem negro, o qual, em uma perspectiva eurocêntrica-colonialista-racista, já nasce errado e condenado. Àqueles que compartilharam nas suas redes sociais e em rodas de amigos esse linchamento público, meu desafio: compartilhem, também publicamente, plágios e mentiras de seus amigos e amigas e, só depois, solicitem deles explicações. E às ciências humanas e sociais e à filosofia: a luta contra os dualismos-maniqueísmos é a nossa condição de sobrevivência e de frutificação, o que também significa a necessidade de coerência teórica, de sensibilidade moral e de autorreflexividade em nome da democracia, do Estado de direito e do pluralismo. Não precisamos e não devemos consentir com essa herança fascista que está por trás das próprias ciências humanas e sociais e, portanto, também não devemos consentir com esse instrumentalismo político que, caudatário do dualismo-maniqueísmo político-moral, legitima o linchamento e a exclusão dos “inimigos” e a hipocrisia moral com nossos “amigos”.