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porto velho, terça-feira 19 de março de 2024
Estamos vivendo em um limbo com a pandemia do coronavírus. Não podemos retornar à normalidade, porque ela já não existe. Se insistirmos em sair para as ruas, em assumir uma rotina de trabalho, de relacionamentos e de badalação como tínhamos anteriormente ao isolamento, estaremos viabilizando uma ampliação descontrolada das contaminações e, por consequência, das mortes, uma boa parte evitável por esse mesmo isolamento e outra boa parte evitável se não tivermos superlotação hospitalar – o que significa que precisamos intensificar medidas e posturas de isolamento social e de restrição de circulação, excetuadas as necessidades óbvias, pelo menos neste primeiro momento.
Nesse limbo em que estamos enterrados-encerrados, confinados em nossas casas vinte e quatro horas por dia, vamos mantendo a rotina de trabalho por meios digitais (é o meu caso), preparando nossa comida, limpando nosso lar, organizando momentos de lazer com a família em termos de filmes, conversas por vídeo etc.; ou, se tivermos de estar na rua realizando nossas atividades, então, como reparo quando vou ao mercado e à farmácia (os únicos dois lugares, além do hospital veterinário, que frequentei desde 18 de março de 2020), trabalhamos com a precaução e também com o medo permanente em relação a uma contaminação, a qual podemos levar para nossos familiares, amigos e mesmo desconhecidos, causando, em muitos casos, a morte deles. Nesse limbo, portanto, vivemos um confinamento sem fim, duradouro amedrontado até, em que nossas ideias, nossas práticas e nossos objetivos, os quais exigem relacionalidade, visibilidade e interação com os outros, estão suspensos em um vácuo, aguardando o tão sonhado dia da cura – e, infelizmente, ela está ainda bem longe, não nos enganemos quanto a isso.
Ora, o mesmo vale para a questão da retomada das atividades socioeconômicas e laborais. A dinamicidade econômica, que não estava muito alta há pelo menos quatro anos, emperrou de vez, ao ponto de, em algumas pesquisas, estarmos com uma queda de mais ou menos dez por cento do Produto Interno Bruto já em 2020. Com exceção de algumas atividades essenciais básicas, a maior parte das atividades – e, em particular, o setor terciário – parou quase que por inteiro, o que causou essa tragédia nacional em que temos, hoje, mais desempregados que empregos formais.
Como já falamos em outros momentos, o setor terciário responde por 74% do PIB brasileiro, o setor industrial por 21% e o agronegócio por 5%. As atividades essenciais em geral centram-se na economia primária (agronegócio) e na economia secundária (indústria), e não na economia terciária (o setor de serviços), de modo que, com a sua interrupção abrangente, cresceu a falência de empresas e o desemprego, o que levou a essa recessão em termos de queda de 10% do PIB nacional em 2020, uma situação que somente poderá ser recuperada em um período de três a cinco anos.
Em vários aspectos, o Estado brasileiro também está preso a um limbo em termos gerenciais, uma vez que concentra todos os seus recursos em decisões estratégicas imediatas ligadas à formulação de políticas públicas que busquem mitigar os impactos socioeconômicos da paralisação das atividades, mas sem ainda planejar o futuro imediato de um tempo em que a pandemia terá cura (ou será minimizada) e será passado. Nesse momento inicial, de arrefecimento dos impactos econômicos e sociais do isolamento, temos um aumento do gasto e do endividamento públicos, sob a forma de empréstimos a juros baixos, renúncia fiscal e programas de distribuição de renda aos estratos sociais mais necessitados, uma situação absolutamente necessária para o efetivo enfrentamento da pandemia, tão necessária quanto o próprio isolamento social – mas, ainda assim, uma situação inicial, primária, não suficiente no médio e no longo prazos.
O que me preocupa, no atual governo federal, é o momento posterior. Já vimos, aliás, que mesmo as decisões ligadas (a) à imposição do isolamento social e à restrição das atividades econômicas e laborais às áreas essenciais e (b) ao planejamento institucional em termos de fortalecimento dos bancos públicos, de renúncia fiscal e de programas de distribuição de renda foram tomadas por Jair Messias Bolsonaro muito a contragosto, porque não é essa a base econômica e a atitude política assumidas pelos teóricos da Escola de Chicago, ao estilo do ministro da economia, Paulo Guedes. Para estes, como pudemos ver pela reunião ministerial divulgada pelo Supremo Tribunal Federal quando da denúncia de Sergio Fernando Moro, é o investimento privado que dinamiza a esfera socioeconômica, e não o protagonismo e nem o investimento públicos. Aliás, naquela reunião, Paulo Guedes posicionou-se contra o Plano Pró-Brasil coordenado pelo General Braga-Netto.
Neste momento inicial, portanto, Jair Messias Bolsonaro, orientado por Paulo Guedes, tem se constituído no mais grave empecilho para essa dupla atitude de combate ao coronavírus, a saber: o isolamento social e o protagonismo estatal. Ultimamente, com a demissão de Sergio Fernando Moro e o conflito aberto com a Operação Lava-Jato por meio do PGR Augusto Aras, Bolsonaro tem perdido apoio junto às classes médias e altas (que encamparam a Operação Lava-Jato e que votaram nele nas eleições) e, por outro lado, por meio da oferta do auxílio social, tem ganhado mais apoio por parte dos grupos menos abastados. Com isso, vimos inclusive o presidente afirmar que prorrogará por mais dois meses – agosto e setembro – o pagamento desse mesmo auxílio emergencial, o que parece uma mudança nessa lógica anti-Estado do neoliberalismo de Paulo Guedes (inclusive, nos estágio iniciais, Guedes e Bolsonaro tinham defendido a oferta de um auxílio de 200 reais para cada sujeito necessitado, o qual foi aumentado para 600 reais pelo legislativo, sendo hoje normalizado pelo presidente e sua equipe econômica). Isso pode ser bom, mas o governo não pode restringir-se a isso. É necessário um projeto político de desenvolvimento ao estilo do Pró-Brasil construído pelo General Braga-Netto e por sua equipe.
E é aqui que começa o problema. Paulo Guedes, que é quem define o tipo de política econômica assumida pelo governo Bolsonaro, rechaça veementemente o Pró-Brasil defendido pelos militares. Como todos nos lembramos do governo militar, tivemos nessa época o fortalecimento de um capitalismo de Estado em que a dinamização da esfera econômica foi assumida pelo Estado brasileiro em termos de construção de empresas públicas, colonização agrária e expansão econômica do centro-oeste e do norte do Brasil, investimento em infraestrutura produtiva (estradas, portos, bancos de desenvolvimento) e incentivo à instalação de indústrias no Brasil. É a mesma lógica que está por trás do Pró Brasil proposto pelo general Braga Netto.
Ora, Paulo Guedes o rechaça porque, com tal plano de reconstrução da economia nacional, romper-se-ia com a lógica da desregulação econômica, da flexibilização da legislação laboral e mesmo com o tipo de protagonismo político em relação à esfera econômica legitimado pelo neoliberalismo – em sua máxima “menos Estado e mais mercado”. Por outras palavras, o Pró Brasil exigiria o fim de Paulo Guedes e a reformulação de Jair Messias Bolsonaro em termos de um líder político pró-Estado e populista econômico, situação que, aliás, o presidente está percebendo ser importante demais politicamente para ser desconsiderada.
Porém, não é possível outro caminho político para o momento pós-pandemia, ou seja, algo similar ao Pro Brasil, à reconstrução política da economia brasileira e à revisão dos compromissos entre capital e trabalho e da legislação laboral ligada à terceirização e à flexibilização das regras trabalhistas aprovadas por Temer e referendadas por Bolsonaro. Não há como uma economia devastada retomar a pujança, o crescimento, a empregabilidade e ser capaz de distribuir renda a não ser que ocorra uma disponibilização maciça de recursos econômicos por parte dos bancos públicos (BNDES, Caixa e Banco do Brasil), por meio da retomada dos investimentos ligados ao Programa de Aceleração ao Crescimento, por meio da reconfiguração dos acordos entre capital e trabalho em torno a uma legislação trabalhista sólida e, finalmente, por meio da institucionalização de uma renda básica de cidadania permanente aos grupos familiares e aos estratos sociais mais vulneráveis (os primeiros a caírem na miserabilidade e no abandono com tais crises socioeconômicas). Não há como esperar-se investimento privado às mancheias diante da ruína econômica vigente; e, no mesmo diapasão, não há condições razoáveis para esperar que o esforço de cada cidadão em termos de se reerguer tenha possibilidades de frutificar se ele não tiver acesso à renda básica de cidadania mínima e a financiamento público para seus projetos de trabalho e de produção.
Nesse ponto, portanto, alcançamos duas conclusões básicas. Primeiro, Paulo Guedes é, hoje, um empecilho ao Pró Brasil, isto é, a um projeto político de desenvolvimento em que o Estado brasileiro seja o cérebro e o condutor do enfrentamento, do planejamento e da reordenação da economia brasileira. Segundo, é preciso que o Pró Brasil seja efetivamente assumido como um projeto de Estado e que o executivo busque com força a consecução de uma posição estadista diante de um contexto pós-pandemia em que uma economia destroçada e uma sociedade civil extremamente fragilizada pela perda de renda, pelo desemprego e pelas baixas expectativas de mobilidade exigirão grandes esforços por parte do Estado brasileiro e de nossa esfera política. E, com isso, o modelo neoliberal de Paulo Guedes, absolutamente ineficaz para o momento, deve ser substituído por um modelo neodesenvolvimentista capaz de colocar a política como a base da economia, do trabalho e da integração social, situação que ela é em qualquer momento.
A tendência de Bolsonaro em prorrogar o pagamento do auxílio emergencial é um bom sinal de sua reorientação populista em termos econômicos e com caráter estatista e neodesenvolvimentista, como Lula já o foi. Mas falta esse passo fundamental que é exatamente a intensificação do Pró Brasil coordenado pelo general Braga Netto enquanto fecho de abóboda do planejamento do amanhã pós-pandemia. Isso esbarra na falta de liderança política do presidente, como estamos vendo na tragédia humana, sanitária, social e econômica que a sua omissão gerencial, o seu desrespeito às normas sanitárias e, finalmente, a sua briga egoísta com os governadores e prefeitos ocasionou. É por isso que ele precisa se afastar da ala ideológica (fundamentalismo e neoliberalismo) e se aproximar do ideário militar no que se refere ao neodesenvolvimentismo.