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porto velho, terça-feira 19 de março de 2024
Até mesmo o grande Max Weber, um dos maiores teóricos – senão o maior – da modernização ocidental como racionalização instrumental levada a efeito pelo Estado burocrático-administrativo e pelo mercado capitalista, acreditava que a política partidária conduziria nossas sociedades, já sem ilusões metafísico-teológicas, a um rumo sem saída dinamizado por um amplo processo de deslegitimação das instituições públicas, em particular do Estado, e, em última instância, do próprio direito, levando-se, por consequência, à perda do interesse popular na política e à individualização da vida social.
E, o que é incrível para um cientista social do seu porte (que inaugurou uma das tradições sociológicas mais frutíferas e consistentes do século XX), o qual tem exatamente na racionalização seu núcleo de análise, Weber acreditava que somente um líder populista de massas poderia rejuvenescer seja a disputa partidária em torno aos cofres do Estado e à construção de currais eleitorais (porque, para Weber, essa era a atitude basilar dos partidos políticos profissionalizados), seja, como consequência, retomada do interesse popular pela política e sua vinculação a uma cultura social democrática e comum, na qual os indivíduos e os grupos se reconhecessem na – e se imbricassem à – multiplicidade sociopolítica.
Surpreendente nessa análise é, conforme penso, um diagnóstico da racionalização moderna que exigiria uma reafirmação de um princípio pré-moderno como “salvação” da modernidade, de um princípio pré-político e pré-jurídico que efetivamente dinamizaria a política e o direito democráticos sob a forma de Estado de direito, a saber, o messianismo político. Por messianismo político, estou entendendo a necessidade de lideranças que conseguem amalgamar em sua pessoa a consciência, a vontade e o desejo de grupos socioculturais amplos, os quais formam uma força homogênea em que esse mesmo líder constitui-se na cabeça da massa e esta massa, por conseguinte, é concebida como extensão corporal daquele. Assim, o líder pensaria e a massa, como sua extensão corporal, agiria por ele, como ele, em nome dele: teríamos, no messianismo político, um líder-partido-seita-cabeça e uma massa-milícia digital-social de aclamação (atualizando para nossa realidade brasileira atual).
Nesse modelo, por óbvio, a tendência geral é substituir-se a institucionalidade, a legalidade, a tecnicalidade, o formalismo e a despersonalização sistêmicos, base do Estado de direito, pelo personalismo, pelo voluntarismo e pelo vocacionamento missionários e messiânicos do líder-partido-seita, o qual subsume em sua própria pessoa às instituições, tornando-se, em verdade, as próprias instituições. Não por acaso, o nazismo, o fascismo, o estalinismo, o franquismo, o salazarismo e as inúmeras ditaduras militares latino-americanas – eventualmente o próprio castrismo e o próprio chavismo – foram figuras políticas emblemáticas do século XX totalmente consoantes com esse diagnóstico e essa proposição weberianos de uma solução personalista pré-moderna e anti-moderna à crise do sistema político e do modelo instrumental de racionalização ocidental.
A razão não tanto do diagnóstico weberiano, mas principalmente de sua proposição em torno ao populismo e ao messianismo políticos está em que Weber seguramente viu a política democrática, agora centralizada no Estado burocrático-administrativo legalista e monopolizada por partidos políticos de massa profissionalizados e por funcionários públicos especializados, como a base de integração e de estabilização de sociedades modernas. Foi pela sua ênfase na política democrática e no Estado e nos partidos políticos, e não no direito de um modo geral e no judiciário em particular, que Weber pôde concluir que somente o retorno de um líder (ou partido, ou seita, como acontecerá depois com os movimentos fascistas e totalitários) “mágico” poderia efetivamente unir as pessoas desunidas pelo liberalismo político e motivá-las à eticidade política, e não meramente ao privatismo civil e ao hedonismo moral-econômico.
Para Weber, a política teria essa obrigação de salvar a modernidade, tarefa que não caberia e nem seria possível ao direito; e a consequência foi exatamente o apelo a uma posição política pré-moderna, anti-moderna e anti-modernizante, o personalismo político vocacionado, voluntarista, missionário e messiânico, sempre sobreposta ao Estado democrático de direito, ao judiciário e ao direito positivo, um modelo que se tornou normalizado ao longo de todo o século XX e, como podemos perceber pelo Brasil hodierno, que continua a manter sua hegemonia em nossa perspectiva sociocultural e na atuação de algumas de nossas principais lideranças políticas.
Max Weber, no meu modo de compreender (o qual, aliás, é caudatário de inúmeras análises políticas complementares, como, por exemplo, Norberto Bobbio, John Rawls, Jürgen Habermas, Anthony Giddens etc.), ao conferir primazia à política partidária como elemento distintivo e primordial de sociedades modernas, obnubilou não apenas o efetivo sentido do embasamento legal dessa mesma política partidária e da atuação das administrações públicas, como colocou em segundo plano a integração e a estabilização pelo direito, o qual é, na verdade, o verdadeiro fundamento de integração e de estabilização de sociedades modernas.
Porque a própria disputa partidária em torno à hegemonia social e ao controle do Estado, ou seja, a política moderna, só faz sentido no contexto de uma ordem legal que embasa o poder político e o determina de modo sobreposto, em termos de controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social, uma ordem legal que, aliás, pressupõe a universalização de direitos e de garantias fundamentais e de segurança, de isonomia, de simetria e de horizontalidade jurídico-políticas que efetivamente dinamizam isso que entendemos em geral por modernidade (universalismo pós-tradicional, com caráter não-etnocêntrico e não-egocêntrico) e suas ramificações, em particular, no nosso caso, na constituição e na relacionalidade entre sistema jurídico, sistema político e sociedade civil, com a sobreposição do direito em relação à política e à moral.
Dito de outro modo, se há algo de moderno à modernidade é exatamente a impossibilidade de o poder político agir de qualquer modo e por qualquer instrumento, conforme o humor ou a doença mental de seus líderes; o poder político moderno é poder de direito, no direito, como direito e pelo direito, e sempre dinamizado processualmente. Ou seja, é poder sistêmico, sistemático, institucionalista, legalista, processual e público, da mesma forma como o sujeito institucionalizado é um sujeito formal e despersonalizado calcado em um procedimentalismo metodológico-axiológico imparcial, impessoal e neutro. Qualquer outra possibilidade de justificação da política, do direito e, se for o caso, da moral moderna está de antemão invalidada; qualquer outro modelo de sujeito público ou institucionalizado é uma fraude. Na modernidade, só cabe universalidade pela legalidade, instituição por processo, política no, como e pelo direito. O resto, isto é, todas as outras alternativas, é fascismo. Ponto final.
O “erro” de Weber, nesse sentido, consistiu em compreender o direito moderno e, assim, o Estado democrático de direito como um produto da política partidário-institucional e como necessitando de escora em regimes de massa, quando é exatamente o contrário que se dá, a saber: é o direito que produz a política, de modo que a política partidário-institucional somente pode acontecer nos trilhos do direito e por meio do devido processo legal (o devido processo legal não faz parte apenas do judiciário, mas de toda e qualquer instituição e sujeito públicos); e tanto o direito quanto a política são instituições contramajoritárias, calcadas exclusiva, necessária e suficientemente nos direitos e nas garantias fundamentais (hoje poderíamos falar em direitos humanos) e ramificada em termos de constituição política e direito positivo. Nada mais e nada menos.
Como dizia acima, é esta tradição assumida por Weber de produção política do direito e, na verdade, de uma solução missionária e messiânica personalista, voluntarista e vocacionada por lideranças políticas antissistêmicas, anti-institucionais, anti-jurídicas e infralegais (no sentido de que o líder-partido-seita se sobrepõe às próprias instituições e rompe com a separação entre poderes e com a sobreposição do direito em relação à política e à moral) que demarcou não só os grandes regimes totalitários do século XX, com seus processos planificados de etnocídio-genocídio amplo, mas, se pensarmos na América Latina, a própria dinamização de processos de modernização mais ou menos bem-sucedidos.
Aqui, o caudilhismo político, correlacionado ao fundamentalismo religioso, ao racismo estrutural e ao militarismo messiânico, foi uma das tônicas da sobreposição da política em relação ao direito e, com isso, consolidou a sempre fácil subversão, quando não o aniquilamento direto, do Estado democrático de direito por diferentes grupos e lideranças políticas, em geral pelas forças armadas, ou contando com o apoio explícito e pungente delas. No seio de nossa modernização periférica, nesse sentido, temos exatamente a centralidade e o protagonismo de sujeitos, movimentos, valores e símbolos pré-modernos, anti-modernos e anti-modernizantes, os quais invalidam o caráter basilar do direito e deslegitimam a ideia de uma democracia e suas instituições correlatas que somente podem se dar no, como e pelo Estado de direito.
E o mais interessante é que esta ideia está plenamente viva e pulsante no dia a dia de nossas práticas institucionais – pensemos aqui no presidente Jair Messias Bolsonaro, que já cogitou em enviar tropas para fechar o STF –, de muitos grupos socioculturais e de diferentes lideranças políticas, religiosas e culturais, com uma tranquilidade de locução pública que raia ao verdadeiro espanto filosófico grego tanto pela naturalidade quanto pela sordidez com que é dita publicamente, aos quatro ventos e a todos os ouvidos – inclusive os do judiciário, que poderia enfrentar esse fascismo à luz do dia com mais severidade, posto que o ameaça diretamente e ao Estado democrático de direito.
Aliás, há que se ressaltar que o fascismo made in Brazil começou e foi sustentado exatamente por setores do judiciário e por operadores públicos do direito que corromperam o devido processo legal em lawfare institucional e o aparato público de investigação, de fiscalização e de punição em polícia de Estado, instrumentalizando e politizando o direito por meio de sua aliança com setores político-partidários específicos e, no limite, permitindo a colonização do direito e da política pelo fundamentalismo. O resultado foi que o judiciário coparticipou na hegemonia de um governo que, hoje, tenta aniquilá-lo ou pelo menos cooptá-lo permanentemente e que não tem nenhum pudor de ameaçá-lo à luz do dia ou no silêncio do Palácio do Planalto (não fossem, nesse caso, as gravações de reuniões disponibilizadas à opinião pública!). Em vários aspectos, o judiciário brasileiro sepultou nosso Estado democrático de direito e permitiu que o próprio direito fosse instrumentalizado e politizado pelo fascismo.
De todo modo, isso somente mostra a centralidade e o protagonismo do direito de um modo geral e do judiciário em particular em termos de estabilidade e de legitimidade das instituições públicas democráticas e, a partir daqui, da própria sociedade civil como um todo. É na arena, desde os valores e através dos instrumentos por ele estabelecidos que a legitimidade e a estabilidade democrática são construídas e implementadas. É no, como e pelo direito que se dá uma autoconstrução reflexiva, controlada e corretiva da democracia por si mesma e desde si mesma. E, o que é melhor, sem necessidade de posturas personalistas, de soluções autoritárias, de valores pré-modernos e de uma massa-milícia digital-social de aclamação, mas apenas (a) pela condição de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalismo e despersonalização sistêmicos, (b) pelo devido processo legal com caráter público e publicizado, (c) pela fundação do direito e da política (e da cultura democrática) de modo exclusivo, suficiente e necessário na universalidade dos direitos humanos, da constituição política e do direito positivo, bem como (d) pela sobreposição do judiciário em relação ao sistema político e à sociedade civil em termos de controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social desde uma atuação contramajoritária, a qual deve ser exigida inclusive para o sistema político.