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CRÔNICA DE FIM DE SEMANA O TREM DA VIDA - Arimar Souza de Sá


Publicada em: 13/10/2019 13:15:58 - Atualizado

CRÔNICA DE FIM DE SEMANA

O TREM DA VIDA

- Arimar Souza de Sá

                              

Com licença poética, “me estou” a perscrutar os “andares” da vida. E, nestes caminhares de sonhos, revejo-me em uma viagem pela bucólica Estrada de Ferro Madeira Mamoré, nos solavancos do vagão, à frente da fornalha, queimando lenha e soltando brasa.

Nesse vagão, os pobres sempre andavam na segunda classe. O intenso calor era apenas um mero detalhe. O importante era chegar.

No sacolejo habitual, em trilhos e dormentes, a viagem seguia. Aqui e ali, o gás, aprisionado na máquina, respirava fundo, deixando fuligens ao vento em meio ao plexo inóspito da selva bruta.

O compasso do trem era sonolento e o atrito dos corpos, dos trilhos, o vapor da lenha e o sol escaldante, moíam os corpos, e os viajantes sentiam-se assados por dentro, como se as suas almas estivessem queimando no purgatório.

De repente, um estampido, com eco retumbante na mata, e o vagão parava. Era uma anta no “mata burro” do trem, mortinha da silva. Depois, tomadas as devidas providências, seguia-se normalmente.

E foi assim, cuspindo fogo desde o princípio, em 1912, que elas, as máquinas 15, 16 e 17, da Estrada de Ferro, iam e vinham de Porto Velho a Guajará-mirim, estreitando os laços de humanidade das duas cidades pioneiras.

O trem levava e trazia gente. O trem levava e trazia riquezas, de lá e pra cá dos castelhanos...

De Belém, vinham os paneiros de farinha. De Guajará-Mirim, as pelas de borracha - o ouro negro amazônico à época. A borracha era produzida para vender e a farinha para comer. É que a vida, naqueles tempos, se findava apenas no comer, no comprar e no vender.

A viagem era infernal, mas era uma viagem de trem, pelas entranhas das matas tropicais, onde habitavam onças, cotias, capivaras, porcos do mato, antas e quatis ...

De quando em vez, as flechadas dos índios, ali pelas bandas do Mutum-Paraná, deixavam morto um homem no chão, um ranger de dentes na saga de vida e morte, do bem e do mal, sob os rigores das intempéries da “braba” natureza amazônica.

Toda viagem era sempre assim: com o bilhete de ingresso nas catracas e o movimento de chegada e saída. Às vezes, na hora da partida, a presença de alguém com um lenço branco e, quem sabe, pendurado no rosto, um pedaço do coração despejado em forma de lágrimas.

Quase sempre, na chegada, vinha a solidão, o vazio, como se um pedaço de nós ficasse para trás e tudo nos parecesse um féretro, como sói acontecer aos que, pelo coice da morte, se vão para o infinito. É que a vida, infelizmente, é irmã siamesa da morte.

Nas minhas reflexões subjetivas, toda viagem tinha um tom sublime, cuja cor não se conseguia decifrar. É que quando partimos, gostamos de levar na mala os nossos sonhos, o nosso cão, o nosso copo preferido, o nosso travesseiro...

Mas demora um pouco até nos darmos conta de que as nossas praças e seus coretos, o lugar que preferíamos nas missas aos domingos, as nossas festas de Sete de Setembro, o amigo preferido, o nosso time de futebol, a nossa rua, a nossa casa, tudo ficará em nosso embornal, arrumado e guardado no fundo da alma e do  coração.

Neste momento é que nos damos conta de que sempre entramos num trem à busca de muitas escalas, e como o sol nos acompanha, deixamo-nos apenas continuar a viagem, dourando a nossa pele nos múltiplas facetas que a vida oferece.

É como se tivéssemos luz e escrevêssemos a nossa própria história sobre as pedras, porque as pedras não nos sentem, mas nós sentimos as pedras. Nelas, “esculturamos” as nossas marcas, sem as dores e dissabores que muitas vezes recolhemos na estrada da vida.

Com poética licença, “me estou” ainda na viagem. Aqui, ali, outro solavanco de um animal no mata-burro do trem  – desta vez foi um veado que restou morto – mas vamos seguindo...

Na viagem, desse trem da vida, às vezes temos a impressão de andar nas nuvens e, como os pássaros, deixamos os ventos nos levarem, procurando margear os nossos desertos para encontrar, enfim, um porto seguro, longe dos nossos medos, das nossas dores e das nossas aflições. É o momento em que pedimos a Deus força para prosseguir, e coragem para enfrentar qualquer ressaca.

Às vezes, a impressão que temos é de que não saímos do mato, e somos ainda uma cotia, saciando-nos com  pequenos ouriços de castanha. Noutras, somos as onças “rajadas”, que atacam e devoram a presa, com furor, para saciar a fome.

Mas, na verdade, somos um simples camaleão. Mimetizados, olhamo-nos, mas não nos deixamos olhar, e tantas vezes revemo-nos, para indagar quem somos, e refletimos, para, enfim perguntar: onde está a eternidade, e afinal de contas, quem somos nós nessa história toda?

Em poética licença, indagamo-nos e consultamos o tempo: acabou! A viagem sempre termina?

Sim, sempre termina, e aí já é hora de retornarmos.

Se preciso, um terno, algumas flores, quatro amigos, ou quem sabe seis, dependendo das alças do trem...

Na vida, o trem é sempre o mesmo, e no final da viagem  não se leva nada, e muitos, por puro orgulho, não se dão conta.

A diferença, apenas, é que nessa última viagem do trem da vida, não sentiremos mais os solavancos, o calor infernal, nem as mortes dos animais, nos mata-burros da estrada.

É que a viagem acabou, e a vida, certamente, terá se esvaído...

AMÉM.


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