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    porto velho, sexta-feira 26 de abril de 2024

Bolsonaro sendo Bolsonaro: a quem interessa a perspectiva anticiência do presidente?


Por Leno Danner

21/10/2020 12:01:58 - Atualizado

Em entrevista ontem, o presidente Jair Messias Bolsonaro parece ter retornado ao modus operandi normal de sua postura como liderança política pública, com a qual pautou seu trabalho social desde décadas (e por meio da qual foi, inclusive, reformado do exército), ou seja, a simplificação da realidade, uma perspectiva anticientífica tola e uma postura anti-institucional gravíssima, que nos envergonham e nos prejudicam fortemente. Ademais, o Gen. Pazzuello, nosso ministro da saúde, como militar que leva o sentido de obediência como negação pessoal até o limite da burrice e da indignidade, já confirmou, seguindo seu presidente, que o contrato de compra de 42 milhões de dose da vacina chinesa contra a COVID-19 está suspenso, que ele não será executado.

Em primeiro lugar, a contradição das contradições que demonstra ou a limitação cognitivo-moral ou o flerte com a catástrofe permanente por parte do presidente Bolsonaro – ou os dois, e ambos os pontos em rigor impedindo sua continuidade como líder do executivo nacional. Cloroquina ou hidroxicloroquina pode, mas vacina contra o coronavírus não pode? Com efeito, o presidente não se cansou de defender ao longo desse ano a utilização de cloroquina desde a fase inicial da manifestação dos sintomas, ao ponto de colocar o exército a fabricar o referido medicamento em grande escala. Não me refiro apenas ao fato de que cloroquina é um produto científico, mas também à situação de que não há comprovação científica sobre a efetividade dela para o tratamento da COVID-19. Entretanto, isto não impediu o Dr. Cloroquina de fomentá-la aos quatro ventos como a panaceia para este nosso problema.

E aqui surge a segunda grande contradição da atitude do presidente: ele diz ter tomado o medicamento quando se infectou, mas, e isso é surpreendente, fazia dois check-ups diários de monitoramento de seu sistema cardiovascular, uma vez que está comprovado que cloroquina pode causar parada cardíaca e estreitamento arterial, contribuindo também para a formação de coágulos no cérebro. Ora, o presidente pode se dar ao luxo de realizar dois check-ups diários e pode, inclusive, como o fazem a grande maioria das lideranças políticas públicas, pagar com nosso dinheiro os altos cursos de grandes hospitais, mas o cidadão e a cidadã comuns, que mal podem sobreviver ao longo do mês e que veem no presidente um semideus vingativo ou um herói revolucionário (obviamente mais caricato do que dom Quixote em sua luta contra os moinhos de vento), podem morrer em suas camas ou ter grave dano fisiológico pelo uso indiscriminado desse medicamento.

Poderíamos falar também, no que concerne a esse espírito anticiência, da contraposição burra relativamente à Organização Mundial da Saúde e à sua proposta de isolamento social horizontalizado enquanto medida fundamental para minimizar a contaminação por coronavírus e, então, já no âmbito doméstico, essa atitude tresloucada de contraposição a governadores e prefeitos em torno a um projeto comum de enfrentamento da pandemia, situação que solidificou não apenas uma grave incapacidade gerencial do executivo federal frente ao caráter endêmico e mortal do COVID-19, senão que também levou – na medida em que o presidente tem muito apoio social (aliás, quase ininteligível diante de atitudes tão anti-institucionais) – à minimização do trabalho de governadores e prefeitos, bem como do próprio protagonismo do Ministério da Saúde, em termos de isolamento social e contenção da propagação do coronavírus.

Por outras palavras, o espírito e o comportamento anticiência do presidente Jair Messias Bolsonaro são destrutivos de nossa sociedade e, incrivelmente, destrutivos da imagem do próprio presidente. No primeiro caso, a falta de um projeto político de enfrentamento do COVID-19, em termos de uma atuação coordenada com a OMS e com estados e municípios, que pudesse estar fundado na valorização da ciência e no protagonismo dela, nos colocou no segundo lugar mundial em termos de contaminações e de mortes (lembrando que essa situação ainda não acabou, com possibilidade de uma segunda onda de contaminação – talvez até mais do que esta segunda onda, uma vez que, enquanto não tivermos vacina, tudo dependerá da efetividade do isolamento social). Ademais, também implicou em que estejamos, hoje, com 14 milhões de desempregados, o que certamente teria sido evitado se tivéssemos desde o início uma perspectiva mais incisiva de protagonismo do governo federal no âmbito socioeconômico (e é importante lembrar que o auxílio emergencial é uma proposta da Câmara dos Deputados, não do executivo federal). No segundo caso, a própria imagem do presidente sai desgastada dessa crise sanitária, social e econômica. Com efeito, seu fundamentalismo tosco, sua incapacidade de um trabalho em equipe, sua postura anticiência relativamente à grande parte de nossos problemas e, finalmente, sua falta de preparo psicológico para lidar com um cargo tão central para a sociedade brasileira, incluindo-se também a inexistência de um projeto político de desenvolvimento socioeconômico e o confronto intenso com os outros poderes, o transformam em uma figura ridícula, inepta e caricata de liderança política, no âmbito internacional e no âmbito nacional. Em caso de problemas, já sabemos a quem não podemos recorrer, porque, parafraseando o Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo”.

Sua postura anticiência, aliás, em nada contribuiu para o crescimento do seu apoio popular, senão que serviu para afastar-lhe de aliados e para desacreditar-lhe frente a uma ampla camada da sociedade brasileira, dos estratos econômicos mais altos aos mais baixos. Ora, o presidente teve uma ampliação do seu apoio social por causa do auxílio emergencial, e não por causa de sua sandice anticientífica e de sua postura de enfrentamento ao judiciário e ao legislativo federais, bem como de seu confronto com estados e municípios. Se assim é, por que o presidente continua com essa perspectiva anticiência? E por que se recusa a assumir a vacina chinesa ou a russa e a testá-las até a comprovação de sua efetividade? Porque é óbvio que a vacina somente será validada para uso se passar em todos os testes preconizados pela OMS. Nenhum governo vai arriscar aplicá-la sem respaldo científico. Ademais, por que não a vacina russa ou a vacina chinesa? Confrontos ideológicos em torno ao capitalismo e comunismo são esdrúxulos nesse momento, não fazendo o menor sentido – na verdade, nem existe mais comunismo hoje, seja no âmbito global, seja na esfera nacional (capitalismo “venceu” e ponto; o próprio liberalismo, meio esquálido em alguns países, mais pujante em outros, venceu e ponto – sigamos a partir daqui). Se a vacina é cientificamente eficaz e segura, tem de ser comprada e aplicada na população, venha de onde vier.

É importante lembrar, aliás, que o presidente norte-americano Donald Trump já comprou em torno de um bilhão e quinhentos milhões de doses de vacina da Bayer, a qual está produzindo a versão norte-americana da vacina contra a COVID-19. Ou seja, já reservou o estoque de pelo menos dois a três anos de produção da vacina para os norte-americanos, o que significa que o Brasil dificilmente receberá alguma dose – lembrando, inclusive, que, antes do Brasil, EUA viabilizará a oferta para seus aliados clássicos, a saber, Inglaterra e Canadá. No andar da carruagem, podemos ser o último país da fila a receber vacinação geral, o que vai destruir nossa economia e amplificar o número de mortes que já temos.

Por fim, não basta mais os defensores de Bolsonaro – e, aliás, o próprio Bolsonaro – argumentarem que o STF retirou do presidente a capacidade de gerenciar um projeto nacional de enfrentamento do coronavírus. O STF apenas fez o óbvio, ou seja, diante da constatação da incapacidade presidencial em coordenar esse mesmo projeto nacional de enfrentamento à COVID-19, abriu a possibilidade de que governadores e prefeitos tivessem autonomia para seguir ou não ao governo federal. Mas é bom lembrarmos que essa decisão do STF não é constitucionalmente correta, porque o governo federal SEMPRE tem primazia na condução de um projeto público amplo de organização social, política, econômica, cultural e sanitária com caráter propriamente nacional. Ocorre que foi uma opção entre a catástrofe certa proposta por Bolsonaro e uma gambiarra jurídica capaz de garantir que governadores e prefeitos pudessem estabelecer projetos públicos de enfrentamento à pandemia.

Por outras palavras: o presidente Bolsonaro detém uma grande parcela de responsabilidade administrativa, jurídica e moral pelas quase 155 mil mortes que temos hoje. E é uma responsabilidade que, como estamos vendo, o presidente continua insistentemente a assumir e a radicalizar, com a última atitude de recusa da vacina russa e chinesa e, por conseguinte, da vacinação em massa da população como uma política pública obrigatória. Isso certamente prejudicará o Brasil (na medida em que o impedirá de retomar no mais curto prazo de tempo possível uma situação de normatividade sanitária, social e econômica), prejudicará milhares de pessoas que perderão a vida ou a saúde por causa do espírito anticientífico e simplificador do presidente e, finalmente, prejudicará o próprio presidente, que pode ver suas aspirações políticas inviabilizadas no médio prazo – e que, inclusive, poderá (na verdade, deverá) ser responsabilizado civilmente, judicialmente pela sua antigestão de nosso país nesse momento tenebroso do coronavírus e de uma consequente crise social, econômica e sanitária sem precedentes, da qual ele não só é responsável, como também contribui de modo fundamental.


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