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    porto velho, quinta-feira 25 de abril de 2024

A responsabilidade institucional pela naturalização e pela normalização da violência racial e de gênero


Por Leno Danner

23/11/2020 17:59:21 - Atualizado

Vivenciamos cotidianamente casos de violência racial e de gênero, nos mais diversos níveis. Com efeito, o racismo estrutural, o fundamentalismo religioso, o conservadorismo cultural e certa dose de etnocentrismo heroico-escatológico dinamizam pungentemente nossos grandes déficits
em termos de uma modernização conservadora não só desconectada com a condição de centralidade do pluralismo, dos direitos humanos e do Estado democrático de direito (ou seja, desconectada com a democracia como um todo), mas também arredia e regressiva relativamente a qualquer possibilidade de reorientação e de correção institucionais de nossos problemas sociopolíticos, a violência racial e de gênero como o maior deles.


Note-se o que acabei de mencionar acima: a reorientação e a correção institucionais de nossos problemas, porque em uma democracia é disso que se trata, a saber, da centralidade e do protagonismo das instituições. Nesse sentido, nós poderíamos nos perguntar: qual a responsabilidade institucional no que diz respeito à normalização e à naturalização da violência racial e de gênero? E o que as instituições públicas podem fazer para eliminá-la (já que, repito mais uma vez, somente as instituições públicas podem, por meio de sua gestão e orientação da coletividade através do imenso e bem sucedido aparato administrativo que elas possuem, correlato à sua grande centralização e reserva de conhecimento teórico-prático produzido e acumulado, podem efetivamente eliminar a violência racial e de gênero, promovendo o pluralismo, os direitos humanos e o Estado democrático de direito)?


A primeira resposta às questões acima: sim, as instituições públicas são e continuam sendo responsáveis pela naturalização, pela normalização e, em alguns casos, pela pungência dos casos de violência racial e de gênero, tanto direta quanto indiretamente. Diretamente, na medida em que já se tornou prática corriqueira e tolerada entre instituições e sujeitos institucionalizados e entre os diferentes grupos e entidades próprios à sociedade civil a promoção de perspectivas fundamentalistas como programática política, como objetivo embasador, dinamizador e orientador da constituição interna e da vinculação social dessas e por essas mesmas instituições públicas. Indiretamente, no sentido de que sujeitos institucionalizados, mormente no caso do sistema político (legislativo bicameral e executivo), na medida em que se elegem com essas pautas fundamentalistas, passam a invisibilizar, a silenciar, a imobilizar e, ao fim e ao cabo, a despolitizar tais questões. Lembremos de três ditos idiotas reverberados por nossas lideranças políticas: “Sou daltônico, não vejo diferenças de cores”, enunciado por Bolsonaro; “Não existe racismo no Brasil” e “Brilhante Ustra era alguém que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”, de nosso vice-presidente Gal. Hamilton Mourão; e, finalmente, “Pelotas é pólo exportador de viado”, do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Ora, essa negação do racismo ou esse preconceito recreativo têm esse duplo efeito de neutralizar as instituições e a abordagem institucional do problema e de caricaturizar as lutas contra o racismo estrutural, o binarismo de gênero, a heterossexualidade compulsória e, então, as formas de violência racial e de gênero ali escoradas, dali dinamizadas. Enfim, a não-tematização institucional do problema da violência racial e de gênero tende a invisibilizá-lo e a despolitizá-lo, uma vez que tudo aquilo que não é assumido e objetivado institucionalmente, não consegue atingir o âmbito normativo-formal propriamente público, ficando, assim, ao deus-dará da irracionalidade cotidiana própria ao racismo, ao fundamentalismo e ao etnocentrismo.


Com isso, temos uma segunda resposta importante: instituições públicas precisam assumir, tematizar e orientar a implementação teórico-prática, nas diversas ramificações em que essas mesmas instituições atuam (políticas públicas, área cultural, educação, planejamento econômico, meio ambiente, segurança pública – principalmente, no caso, na educação, na escola e nos currículos pedagógicos), de um combate sem tréguas à violência racial e de gênero. Precisam visibilizá-la, contextualizá-la, politizá-la, ou seja, neste último caso, compreendê-la como uma questão intersubjetiva, relacional e social que perpassa nossa vida cotidiana e que chega às instituições, retornando destas mais uma vez à vida cotidiana.


Note-se, aqui, que o combate à violência racial e de gênero não pode ser adscrito ao partidarismo político pura e simplesmente, como o fazem o presidente Jair Messias Bolsonaro e o vice-presidente Gal. Hamilton Mourão ao associá-lo seja ao marxismo cultura e às pautas de minorias político-culturais atentatórias do seu infame “Deus, Pátria e Família”, seja, então, ao fato de que esse enfrentamento da violência radical e de gênero é meta exclusiva da “Esquerda”, seja lá o que se entenda, nesse caso, por esquerda. A “direita” também precisa ter compromisso estrito com direitos humanos, pluralismo-diversidade e Estado democrático de direito, não podendo ser reduzida a essa salada mista insossa e totalmente ilegítima do “liberal na economia e conservador nos costumes” – liberal é liberal na economia e, antes de tudo e como condição para tudo o mais, nos costumes, na cultura, principalmente quando se trata da gestão das instituições públicas e de sua tematização da sociabilidade democrática. Por isso mesmo, não se pode deslegitimar o enfrentamento ao racismo, ao binarismo de gênero e à heterossexualidade compulsória com o argumento de que é uma pauta política (isto é, particularista, não universalista, militante, não-neutra) de minorias político-culturais que objetivam a destruição do tradicionalismo.


No fim das contas, é aqui que o grande núcleo estruturante do direcionamento, do presente e do futuro de nossas instituições públicas acaba acontecendo efetivamente, ou seja, no âmbito das disputas político-partidárias em termos de hegemonia de visões de mundo obscuras e simplificadoras, amplificadas pela reação incisiva, por exemplo, de posições fundamentalistas que, impulsionadas pelo neopentecostalismo mais baixo e simplificador possível, tendem a imobilizar e, em última instância, a recusar e a anular
o potencial transformador, integrador e orientador das e pelas instituições públicas. Ora, em uma situação (a) em que a pobreza das experiências e dos aprendizados históricos que temos como nação (a pobreza histórico-normativa em torno exatamente ao pluralismo, aos direitos humanos e ao Estado democrático de direito, a qual se reflete, por exemplo, na pobreza seja de nossos princípios e práticas educacionais, seja dos monumentos históricos e das lideranças e pautas políticas que tivemos e temos), (b) em que a balança de equilíbrio entre judiciário, legislativo e executivo pouco funciona efetivamente e, finalmente, (c) em que a esfera pública e a opinião pública fragmentaram-se em bolhas político-morais incapazes de reciprocidade, relacionalidade e construção de compromissos recíprocos em torno ao pluralismo, aos direitos humanos e ao Estado democrático de direito, temos essa tendência regressiva, imobilizadora, travadora do Estado democrático de direito brasileiro e, então, essa naturalização, normalização e despolitização amplas da violência racial e de gênero de que falava acima. No contexto de nossa modernização conservadora, portanto, os casos de violência racial e de gênero que vimos recentemente não serão os últimos, mas apenas um ponto contínuo e sistemático na ampla cadeia de violência simbólico-material vivida cotidianamente por uma coletividade incapaz de se perceber e de se assumir como diversidade rica, produtiva e transformadora, incapaz de alcançar a consciência – individual e social – dessa condição.


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