Fundado em 11/10/2001
porto velho, sábado 6 de dezembro de 2025

CRÔNICA DE FIM DE SEMANA
A vaga que não se preenche mais – A morte por uma linha no chão
Arimar Souza de Sá
Há fatos que rasgam a semana como um raio torto lançado por mãos humanas — explosões de ira que, num segundo, viram sentença de morte. São episódios que implodem famílias e lembram, como a leoa de João Pessoa, que basta uma fagulha de impaciência para destruir vidas.
O crime de Palmas — um “bacana” matando um flanelinha por uma correção no estacionamento — poderia ter sido aqui: Campos Sales, Jatuarana, Jorge Teixeira, Nações Unidas… nesses pontos onde o volante vira espada e o ego dirige sozinho e não aceita correção.
Dhemis Augusto Santos, 35 anos, era um guardião invisível da ordem miúda: vigia simples, 'dono' de meia dúzia de vagas riscadas no chão e da missão ingrata de lembrar aos distraídos que linha pintada é regra, não sugestão. No dia 29 de novembro, fez o que sempre fez: pediu que um motorista estacionasse direito. Uma frase curta — e o azar de tocar o calcanhar do orgulho alheio.
Do outro lado, Waldecir José de Lima Júnior, 40 anos, acomodado numa Land Rover que talvez lhe desse a falsa impressão de que humildade era acessório e equilíbrio, item opcional. O aviso foi o fósforo. O tiro, incêndio. Dhemis caiu. O socorro veio tarde. E a Land Rover fugiu da cena — mas não da sombra projetada pela própria covardia.
E aí eu pergunto: que país é esse?
Viramos arena?
Disputamos vaga como quem disputa território?
Transformamos um pisca torto em duelo e uma advertência em sentença de morte?
Porto Velho conhece esse roteiro. Já vi caminhonete avançar contra moto por um “fechou sem querer”; já vi vidro quebrado, murro, faca e revólver sacados por causas menores que uma gilete deitada. O trânsito tornou-se coliseu de pequenos imperadores, muitos deles protegidos pelo couro macio dos carrões.
E a celebração da violência não vem de hoje. As arenas de MMA lotam. A plateia vibra quando o supercílio abre, quando o sangue jorra, quando a dor vira espetáculo. Talvez seja essa mesma plateia que, incapaz de aceitar a leveza de uma simples correção no asfalto, liberta o monstro da jaula e o solta na vida real de um estacionamento. Aplaude o golpe no ringue… e finge espanto quando ele salta a grade e mata um trabalhador.
A polícia prendeu o autor, mas nenhum inquérito remenda o buraco que ficou em casa — nem o golpe no peito da sociedade. A vaga que Dhemis cuidava continua ali, silenciosa, esperando outro carro que chegará sem encontrar o homem que — por uma linha no chão — perdeu a própria vida.
Seguimos menores, frágeis, expostos — prontos a matar por um xingamento e morrer por nada. Talvez porque desaprendemos o básico: domar a fera da impaciência. A paz começa quando seguramos o ímpeto, respiramos antes de reagir e lembramos que ninguém é dono da rua — somos apenas usuários dela. Um freio na hora certa vale mais que mil desculpas tardias.
É fim de semana, e Porto Velho gira. Dirija, leitor, desarmado, como quem conduz a própria alma. Porque a próxima buzina torta, o pisca ignorado ou a fechada involuntária podem ser a faísca… e o gatilho. Queira Deus que não.Mas, se não repintarmos os limites — não os do asfalto, mas os de dentro — seguiremos transformando pequenas rusgas em obituários.
Que Dhemis seja recebido na luz que lhe negaram aqui embaixo, e que nós, ao volante da vida, encontremos coragem de redesenhar nossos contornos, respirar fundo e escolher a vida — sempre a vida — quando a fúria nos chamar por nada, por uma advertência, por uma simples linha no chão.
Que assim seja!
AMÉM!