Fundado em 11/10/2001
porto velho, domingo 24 de novembro de 2024
São Paulo, julho de 2018 – “Nunca um profissional da saúde visitou nossa aldeia e perguntou se sentíamos dor e como tratávamos dela”, afirma Pixi Kata Matis. Com apenas 23 anos ele é atualmente a principal liderança da tribo Matis, localizada na Terra Indígena Vale do Javari. Na divisa do Brasil com Peru e Colômbia e 1.138 quilômetros distante de Manaus, no Amazonas, a aldeia com pouco mais de 500 índios tem idioma próprio e somente há cerca de 40 anos teve o primeiro contato com o branco. A localização – no meio da floresta –, as diferenças culturais e linguísticas são, para o jovem líder, as principais dificuldades para o acesso a serviços básico como saúde. Em junho de 2017, pela primeira vez esse e outros dois povos indígenas do Vale do Javari ouviram perguntas como: “você sente dor?”, “a dor é forte, moderada ou fraca?”, “onde dói?”. Os resultados fazem parte de um estudo inédito sobre as dores dos índios no Brasil feito pela mestranda Elaine Barbosa de Moraes com orientação da professora e pesquisadora da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, Eliseth Leão.
Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), durante um mês as pesquisadoras visitaram as tribos Matis, Kanamary e Marubo para conhecer as principais queixas álgicas (relativas à dor) dos indígenas e as terapias usadas para o tratamento delas. O trabalho também se propôs a entender como os agentes de saúde atuam no atendimento para a dor dessas populações. A pesquisa contou com entrevistas com 45 indígenas das três etnias. Para entender melhor a relação dessas populações com a dor, foi levado em consideração o dia a dia dessas pessoas.
“Para estudar a dor é preciso ter em vista fatores culturais, sociais e econômicos”, explica Eliseth. Nas três tribos a dor está relacionada com o trabalho rural, uma vez que todos os indígenas realizam diariamente tarefas rurais pesadas, que incluem carregar cargas por longas distâncias. A pesquisa mostra que 73,2% dos entrevistados afirmaram ter dor no corpo e as áreas mais mencionadas foram os membros inferiores (46,6%), seguidos pela coluna (37,9%), articulações (35,5%), membros superiores (33,3%) e, por último, abdome (24,4%).
Entre as mulheres a dor tem um significado a mais: força. Nenhuma mulher, das três etnias, fez referência à dor do parto, quando questionadas sobre sensações dolorosas pregressas. “Isso mostra que a dor faz parte de um processo natural e não visto como anormalidade”, explica Elaine. Durante a entrevista para o estudo, 77,8% dos índios disseram estar sentindo dor (veja tabela abaixo).
Sobre intensidade, as respostas ficaram divididas. Enquanto 37,8% dos 45 participantes declararam sentir dores fortes, outros 33,3% alegaram intensidade fraca. Outros 26,7% não responderam a questão. “É importante ressaltar que o entendimento de forte, fraca e moderada também pode ser diferente do nosso, uma vez que os aspectos culturais podem interferir no limiar de dor”, explica Eliseth. Ela observa ainda que o idioma foi uma barreira para a pesquisa.
Tratamento da dor
O ‘remédio do índio’, feito de acordo com as tradições de cada tribo e ervas, rituais e música foi apontado como fator de melhora da dor por 64,4% dos entrevistados, seguido pelo remédio do mato feito a partir de extratos da natureza como raízes e folhas (60%). Já os medicamentos do branco (comprimidos e xaropes, por exemplo) foram apontados como fator de melhora por apenas 22,2% dos indígenas. Respostas naturais, levando em consideração que 80% das pessoas da tribo ainda usam a medicina tradicional indígena.
Profissionais da saúde
A dor não é investigada pelos profissionais de saúde que prestam atendimento às três tribos na Amazônia. Esta foi a resposta de 73% dos participantes da pesquisa. Além disso, mais da metade – 51% – disse não estar satisfeita com a qualidade dos serviços de saúde ofertados.
Técnicos em enfermagem e enfermeiros são a maioria entre os profissionais de saúde que atuam nessa área: representam 66,7%. A maioria (58,3%) tem entre 1 e 5 anos de experiência.
“São comuns erros no entendimento das equipes de saúde em relação ao que estamos sentindo e no diagnóstico. Faltam treinamento e conhecimento das nossas questões culturais. Precisamos que a saúde para o povo indígena melhore”, afirma Pixi.
Uma proposta apresentada pelo estudo do Einstein foi o desenvolvimento de uma cartilha com informações e recomendações para o manejo da dor com base nas práticas culturais da medicina tradicional indígena. “A cartilha tem o objetivo de facilitar o diálogo entre as duas medicinas e dar um direcionamento para uma abordagem sobre a dor para atender ao indígena”, explicou Elaine.