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porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
BRASIL: Em recente entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, a constitucionalista Vera Chemim traçou um panorama do federalismo brasileiro e opinou que os estados deveriam ter mais autonomia, com base nos princípios sobre os quais esse conceito foi construído, mas indicou que isso não ocorre na prática. Entre os motivos, ela lembrou que a Constituição abre espaço para leis complementares delegarem competências da União aos estados, mas tais normas não são instituídas.
Outros constitucionalistas consultados pela ConJur confirmaram que essa possibilidade praticamente não é usada, mas disseram que isso não necessariamente significa uma limitação dos poderes dos estados. Tudo depende da interpretação dada ao federalismo e à repartição de competências presente na Constituição.
Chemim alegou que essa repartição de competências não é bem gerida pelos entes federados, o que gera um excesso de centralização do poder na União. Ela vê isso como um problema que dificulta o desenvolvimento dos estados e agrava assimetrias entre eles, já que cada unidade da federação tem “suas peculiaridades de natureza geográfica, populacional, econômica e política”.
O artigo 22 da Constituição traz uma lista de temas que são de competência privativa (ou seja, exclusiva) da União, mas o parágrafo único desse mesmo dispositivo diz que uma lei complementar pode autorizar os estados a legislar sobre questões específicas dos temas listados.
Ou seja, se um tema é de competência privativa da União, o Congresso pode aprovar uma lei complementar que delegue aos estados a competência para legislar sobre questões específicas relacionadas a esse tema.
Porém, de acordo com Chemim, “muitas vezes, na prática, essa repartição de competências é inócua”. Segundo ela, os estados ficam impossibilitados de legislar sobre assuntos específicos e peculiares de seu interesse porque não existem leis complementares federais delegando tais competências.
Para a advogada, esse modelo de federalismo “tem potencial para ser efetivamente materializado”, mas isso não acontece porque “os estados ficam no limbo”.
O jurista Lenio Streck destaca que, desde a promulgação da Constituição, apenas uma lei complementar delegou uma competência privativa da União para os estados: a LC 103/2000, pela qual os estados foram autorizados a instituir piso salarial de categoriais que não tenham tal direito garantido em lei federal.
Na visão do advogado e professor Raphael Sodré Cittadino, a exigência de lei complementar “não limita a competência dos estados para legislar sobre temas locais e específicos”, mas somente limita “a competência para o estado absorver competência da União”.
De acordo com ele, “não se espera em uma circunstância de normalidade democrática e institucional” que o Congresso decida delegar competência da União para os estados.
“Não necessariamente a ausência da lei complementar limita, pois não impede o exercício regular das competências constitucionais já diretamente previstas na Constituição para os estados e municípios”, aponta Ingo Wolfgang Sarlet.
Ele se refere a outros trechos da Constituição, que estabelecem outras competências às unidades da federação — como o artigo 24, que traz as competências concorrentes entre União e estados.
“Claro que a delegação é um instrumento que pode ser importante para aumentar níveis de descentralização, mas a tendência, em termos gerais, é a de termos uma federação mais centralizada do que em outros países”, afirma Sarlet.
Ana Paula de Barcellos, professora de Direito Constitucional, diz que “a previsão de lei complementar diz respeito a competências que são privativas da União, e não dos estados”. Por isso “não há impacto sobre a autonomia dos estados ou sobre as competências deles”. Ela considera que a competência para assuntos de interesse local é, a rigor, dos municípios, e não dos estados.
A professora explica que “tudo recebe a influência de como as competências em si, sobretudo as da União, são interpretadas” — de forma mais ampla ou mais restrita.
Vera Chemim, por exemplo, parte do pressuposto de que a ideia original do federalismo brasileiro, quando adotado na Constituição de 1891, era seguir os moldes americanos, com uma maior descentralização do Estado. Mas, com o tempo, o modelo foi se distanciando da sua inspiração — especialmente nos períodos do Estado Novo e da ditadura militar, que centralizaram mais poderes na União.
Já Streck se atém ao texto da Constituição de 1988: “É notória a opção centralizadora do constituinte originário por um modelo de amplo rol de competências privativas da União, de onde resta uma competência residual enxuta para estados”.
Além da falta de aprovação de leis complementares para a delegação de competências, Vera Chemim, em sua entrevista, ressaltou que os estados “não cobram nem da União e nem do Legislativo essa lei complementar autorizando-os a legislar sobre questões que são importantes para cada um deles”.
Porém, se o caminho legislativo não é tão usado, Streck lembra que há “uma certa tendência jurisprudencial em favor do federalismo” no Supremo Tribunal Federal.
Como exemplo, ele cita um julgamento (ADI 4.060) no qual o STF validou uma lei de Santa Catarina que fixava um número máximo de alunos em sala de aula. Os ministros consideraram a necessidade de prestigiar “iniciativas normativas regionais e locais sempre que não houver expressa e categórica interdição constitucional”.
Ou seja, levar o caso ao Supremo é sempre uma opção para os estados. O advogado Georges Abboud, professor de Direito Constitucional, recorda que “a própria Constituição traz remédios” para sanar omissões e impedir que suas promessas “não sejam cumpridas no plano legislativo”.
Existem, por exemplo, os mandados de injunção e as ações diretas de inconstitucionalidade por omissão. Estas últimas podem ser ajuizadas por governadores ou partidos com representação no Congresso, com o objetivo de “chamar a União a editar lei delegativa faltante, caso demonstrado o prejuízo objetivo”.
Outro caminho, para o qual “a jurisdição constitucional brasileira amadureceu muito nos últimos anos”, segundo Abboud, é o dos acordos. O STF já homologou, por exemplo, a gestão compartilhada do arquipélago de Fernando de Noronha entre a União e o estado de Pernambuco.
Da mesma forma, a corte validou um acordo no qual a União se comprometeu com os estados a encaminhar ao Congresso um projeto de lei sobre repasses previstos na Lei Kandir.
“Soluções parecidas poderiam ser pensadas para o caso de a União deixar de editar lei que delegue certas competências legislativas aos estados”, assinala Abboud.
Ele considera inconstitucional “a falta de certas leis cuja elaboração a Constituição permitiu ou determinou”. Por outro lado, ressalta que a delegação frequente da competência da União para os estados “poderia gerar inconsistências no ordenamento jurídico e eventualmente sobrecarregar o STF com análises formais de constitucionalidade”.