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    porto velho, segunda-feira 25 de novembro de 2024

Não era só futebol: além de gols, Rei do Futebol Pelé fez também uma lei

Duas pessoas tiveram papel fundamental na produção dessa lei. Uma foi o empresário Hélio Viana, sócio de Pelé e, à época, secretario-executivo do ministério.


Conjur

Publicada em: 29/12/2022 17:21:40 - Atualizado


BRASIL - Não era só futebol. E a esta revista eletrônica jurídica cabe lembrar a grande contribuição para o ordenamento jurídico pátrio de Pelé, que morreu na tarde desta quinta-feira (29/12), aos 82 anos, em São Paulo. Foi na gestão do Rei do Futebol como ministro dos Esportes, no governo Fernando Henrique Cardoso, que a legislação esportiva brasileira deixou a idade da pedra e entrou na civilização. A Lei 9.615, de 24 de março de 1998, criada com o propósito de dar mais transparência e profissionalismo ao esporte, instituiu o fim do passe nos clubes de futebol, estabeleceu o direito do consumidor nos esportes, disciplinou a prestação de contas por dirigentes de clubes e a criação de ligas, federações e associações de várias modalidades.

Duas pessoas tiveram papel fundamental na produção dessa lei. Uma foi o empresário Hélio Viana, sócio de Pelé e, à época, secretario-executivo do ministério. Foi ele quem tratou da proposição e da articulação política para a aprovação do projeto. O outro ator da peça foi o então subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil do governo FHC, o hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, a quem coube a fundamentação jurídica do projeto. Sem os dois, muito provavelmente não teria existido esse marco da legislação brasileira, mas com toda certeza, e muito menos, sem Pelé também não. Não é por acaso que a Lei 9.615/1998 só é conhecida como Lei Pelé.

Antes dela houve a Lei 8.672/1993, a muito bem chamada de Lei Zico, em homenagem a outro grande craque do futebol que também foi ministro dos Esportes (na época, com status de secretaria), mas no governo Itamar Franco. Só que a Lei Zico era, por assim dizer, uma manifestação de desejo. Foi, por isso mesmo, inteiramente revogada e substituída pela Lei Pelé, que tinha um tom mandatório definitivo.

E depois dela vieram muitas outras, como o Estatuto do Torcedor, que regulamentou os direitos de consumidor dos aficionados do futebol (Lei 10.671/2003); a Lei das Sociedades Anônimas do Futebol, que alinhou os mecanismos para a conversão dos clubes em empresas (Lei 14.193/2021). Não veio ainda, mas está por chegar a Lei Geral do Esporte Brasileiro (PL 1.153/2019). Em tramitação desde 2019, o projeto de lei já passou pelo Senado e teve aprovação na Câmara dos Deputados em julho deste ano. Como o texto aprovado no Senado sofreu alterações na Câmara, volta para análise na Câmara Alta. Atletas têm se manifestado contra o projeto. Reclamam principalmente pelo fato de não terem sido convocados para discutir a matéria. Claro que disso Pelé não tem culpa.

Pelé teve de dar explicações à Justiça mais de uma vez e o caso mais notório foi o relacionado ao reconhecimento de paternidade de Sandra Regina Machado Arantes do Nascimento. Filha de um relacionamento fortuito de Pelé com a empregada doméstica Anísia Machado, quando já namorava com Rosimeiri Reis, a mãe de três de seus cinco filhos, Sandra foi criada pela mãe sem saber quem era seu pai. Aos 32 anos, ela conseguiu provar a paternidade mediante um teste de DNA. Só então teve o direito de acrescentar o sobrenome paterno ao próprio nome. Sandra tocou sua vida sem receber o reconhecimento afetivo do pai, elegeu-se vereadora em Santos e morreu em 2006, vítima de câncer. Pelé não lhe deu qualquer apoio durante o tratamento da doença e sequer compareceu ao enterro da filha. Dignou-se a mandar uma coroa de flores.

Pelé sofreu pesadas críticas por seu comportamento no mínimo frio, senão cruel, em relação a essa filha. O caso serve, porém, para evidenciar que a Justiça pode muito, mas não pode tudo. A sentença que concedeu a Sandra o direito de ter um pai, usar seu sobrenome e desfrutar dos direitos patrimoniais não foi capaz de lhe assegurar o que ela mais queria e buscava: o amor do pai.

Intrigante nessa história, porém, é que Pelé teve uma outra filha fora do casamento, e a esta dispensou tratamento completamente distinto. Flavia Kurtz, fruto de um relacionamento extraconjugal de Pelé com a jornalista Lenita Kurtz, só conheceu o pai quando já tinha 20 anos e foi prontamente reconhecida como filha.

Em um artigo publicado na internet em 2002, justificou a diferença do tratamento dispensada às duas filhas. "Enquanto Flávia me procurou para contar tudo, Sandra preferiu recorrer aos advogados e à imprensa", escreveu ele. Não convenceu, e deixou sem resposta a pergunta: Por que, Pelé?

Mas não é só futebol. Este senhor Edson Arantes do Nascimento, vulgo Pelé, começou a entrar para a história no longínquo junho de 1958, na Suécia, quando venceu, com a seleção brasileira, a primeira Copa do Mundo para o Brasil. Então com 17 anos, Pelé participou de quatro dos seis jogos e marcou seis gols. Mas quem acabou eleito o melhor jogador daquela Copa foi o meia Didi, seu companheiro de time. A Pelé coube uma façanha ainda maior: tornar-se o símbolo da revelação da nação brasileira para o mundo.

Para o escritor Nelson Rodrigues, talvez o maior cronista da vida brasileira no século 20, a Copa de 1958 enterrou o complexo de vira-latas do povo brasileiro. Segundo ele, o brasileiro era acometido de um complexo de inferioridade que o impedia de ver as suas próprias qualidades e de se afirmar perante o mundo. No futebol, o maior exemplo disso acontecera oito anos antes, quando a seleção brasileira, diante de um Maracanã lotado com 200 mil pessoas, foi humilhantemente derrotada pelo Uruguai por 2 a 1, depois de estar vencendo por 1 a 0 e podendo até empatar para ser campeã. Vira-latas, isso é que éramos os brasileiros.

Até que veio 1958 e aquele time maravilhoso que, além de Didi e Pelé, tinha ainda Garrincha, um não atleta capaz de desafiar toda a ciência do esporte e fazer coisas que ninguém mais conseguia. E tinha também Gilmar, Zito, Vavá, sim, um timaço. Quando Belini ergueu a taça do mundo no acanhado estádio de Rasunda, em Estocolmo, os estrangeiros de todos os cantos se deram conta de que existia um país chamado Brasil, que era campeão do mundo. Ali, escreveu Nélson Rodrigues, "o brasileiro deixou de ser um vira-latas entre os homens e o Brasil, um vira-latas entre as nações"

O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos escreveu um livro com o título Feliz 1958 o ano que não devia terminar, parafraseando no título outro livro notável, 1968 o Ano que Não Terminou. Mas a celebração desses dois anos tem motivações diferentes. Enquanto o 1968 foi o ano que abalou as estruturas políticas, sociais e culturais do mundo, 1958 foi o ano do redescobrimento do Brasil. O presidente da República era Juscelino Kubistchek; João Gilberto gravou o disco Chega de Saudade, que inaugurou a bossa nova; saiu às ruas o DKW-Vemag, o primeiro carro montado no Brasil com 50% das peças fabricadas pela indústria nacional; o filme Orfeu Negro ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes; Maria Esther Bueno foi campeã de duplas em Wimbledon; e, como lembra Joaquim Ferreira, Roberto Carlos conheceu Erasmo para formar a mais exitosa parceria da música brasileira.

Esse Brasil bem-sucedido, sem seu ancestral complexo de vira-latas, teve a sua mais genuína expressão em Pelé, o brasileiro mais conhecido em todo o mundo desde aquele 1958. Circula pelas redes sociais um vídeo que mostra o astro do rap americano Snoop Dogg conversando com ex-campeão mundial dos pesos-pesados Mike Tyson. O assunto: Pelé. Diz Mike Tyson: "O Pelé é conhecido no mundo inteiro. Na Copa da Rússia, saí com ele na rua e as pessoas gritavam: 'Pelé! Pelé! Pelé!'". Responde Snoop Dogg, depois de enumerar a inteligência e a rapidez do jogador Pelé: "Ele podia fazer tudo sozinho, mas ele envolvia a equipe inteira porque a equipe te faz melhor."

Além de ministro dos Esportes, Pelé foi embaixador da ONU, da Unicef e da Unesco. O diplomata João Baptista Pinheiro, embaixador do Brasil no México por ocasião da conquista do tricampeonato pela seleção e por Pelé, disse certa vez que "Pelé jogou futebol por 22 anos e, durante esse tempo, fez mais para promover a amizade e a fraternidade mundiais do que qualquer outro embaixador em qualquer lugar".

No futebol, sempre que se quis eleger qual o melhor jogador da história, a referência era sempre ele, Pelé. Desde Di Stefano, passando por Cruyff, Platini, Maradona, Messi, Mbappé. Quem era melhor: qualquer um ou Pelé? Para outros a pergunta é: quem é o maior atleta do mundo: Jesse Owens? Muhammad Ali? Michael Jordan? Ou Pelé? Sempre Pelé. E se a pergunta era sobre ser excelente, Pelé também podia ser equiparado a Chaplin, a Gandhi, a Shakespeare.

Apesar de sua poderosa imagem, pouco se sabe ou pouco se comenta sobre o que o Pelé pensa sobre a vida, o mundo e as pessoas. Duas frases indicaram um rumo. A primeira, lá pelos anos 70, quando disse que brasileiro não sabia votar. Numa época em que os brasileiros estavam impedidos de votar para presidente, a afirmação soou um tanto ingênua, e também um tanto arrogante, mas os resultados das eleições que se seguiram a partir de duas décadas depois mostraram que ele não estava totalmente errado.

A outra frase que teria bombado nas redes sociais, se houvesse redes sociais na época, foi na emoção do milésimo gol, perante uma multidão de torcedores no Maracanã: "Ofereço este gol às criancinhas pobres do Brasil". Pareceu pura demagogia, mas visto retrospectivamente foi premonitório, já que naquele tempo não se falava em trabalho infantil, exploração sexual de menores e de outras mazelas que ainda hoje atormentam essa parcela vulnerável da população.

Uma das personalidades negras mais importantes do mundo em seu tempo, Pelé nunca foi um militante da causa dos homens e mulheres negros e negras. O jornal El País, da Espanha, publicou em 2020 uma reportagem de seu correspondente em São Paulo, Breiler Pires, sobre o assunto, a partir de um paralelo entre Pelé e Michael Jordan, outro atleta estelar negro que evita tomar posições sobre a questão racial. "Eu não me via como ativista. Só queria praticar meu esporte, estava focado no meu trabalho. Fui egoísta? Provavelmente. Mas essa era minha energia, era daí que ela vinha", disse Michael Jordan nas páginas do El País.

Pelé foi no mesmo tom: "Me chamavam de negro, crioulo, macaco, mas eu não ligava", contou. "Eu prefiro dar exemplos. Para a família, os amigos e os fãs. Essa é minha luta." E conclui o jornal: "Embora tenham evitado o ativismo, tanto Pelé quanto Michael Jordan foram  enormes agentes políticos

Rei, ele usava sua majestade como a rainha da Inglaterra. Não se sabe bem o que ela fazia, nem se levava muito em conta o que ela dizia. Mas bastou ela morrer para se saber a dimensão que ela ocupava no Reino Unido. Com Pelé é a mesma coisa. A majestade de Pelé vai muito além do futebol, do Brasil, da vida. Pelé é eterno.


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