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porto velho, quarta-feira 27 de novembro de 2024
MUNDO: O intestino é considerado o segundo cérebro do corpo humano, já que é coordenado por um sistema nervoso autônomo com as mesmas características do encéfalo. Tem funções tão estratégicas que a sua microbiota, formada por micro-organismos diversos, é relacionada a uma infinidade de questões de saúde — desde a melhora do sistema de defesa a uma maior vulnerabilidade a doenças. Um estudo divulgado na edição de ontem da revista Nature Communications mostra que o novo coronavírus pode reduzir o número de espécies bacterianas no órgão de infectados. Com isso, germes resistentes a antibióticos podem invadir a corrente sanguínea, trazendo maior risco de contaminações secundárias graves, alertam os autores.
A investigação, liderada por cientistas da NYU Grossman School of Medicine, acompanhou 96 homens e mulheres hospitalizados em razão da covid-19 em 2020, nas cidades norte-americanas de Nova York e New Haven. Os resultados mostraram que a microbiota intestinal da maioria dos participantes do estudo era pouco diversa, sendo que 25% deles tinham um único tipo de bactéria. Conjuntamente, observou-se que vários germes conhecidos por serem resistentes a antibióticos aumentaram suas populações no intestino dos pacientes — provável consequência do uso indiscriminado de antibióticos. Em 20% dos infectados, essas bactérias mais poderosas foram detectadas migrando para a corrente sanguínea.
Segundo os pesquisadores, esse é o primeiro estudo a acusar que a própria ação da infecção pelo coronavírus danifica a microbiota intestinal, e não apenas o uso de antibióticos, e que, em função disso, há o risco de ocorrência de infecções perigosas. "Estudos anteriores mostraram que os pacientes com covid-19 apresentam desequilíbrios no microbioma, mas a consequência não era clara. Também sabíamos que as infecções da corrente sanguínea são uma complicação com risco de vida para essas pessoas. Conectamos os pontos mostrando que o microbioma intestinal é uma fonte dessas infecções na corrente sanguínea", afirma Ken Cadwell, microbiologista e um dos coautores seniores do estudo.
Na pesquisa, inicialmente os cientistas contaminaram com Sars-CoV-2 dezenas de camundongos. Isso permitiu que avaliassem se o desequilíbrio da flora intestinal e os defeitos no revestimento do intestino seriam consequência direta da infecção viral. Depois, a equipe coletou amostras de fezes e sangue de pacientes com covid-19 e as analisou por meio de técnicas de sequenciamento e abordagens computacionais que incluem dados clínicos dos hospitalizados. Essa investigação mostrou que humanos com coronavírus têm desequilíbrios semelhantes no microbioma, como observado também nas cobaias, e que esse fenômeno estava ligado a infecções na corrente sanguínea.
"Esse estudo em si evidenciou que não só o uso exagerado, mas também que o próprio coronavírus age na parte da flora intestinal causando um predomínio das bactérias patogênicas e facilitando essa disseminação para todo o sistema. Essa foi a grande novidade", avalia Bernardo Martins, médico gastroenterologista do Hospital Santa Lúcia de Brasília. Na ausência de remédios para combater a covid-19, os antibióticos, utilizados para tratamento de doenças bacterianas, foram prescritos em ampla escala pelo mundo. A comunidade científica, porém, sempre contestou o protocolo.
Carla Kobayashi, infectologista do Hospital Sirio-Libanês de São Paulo, explica que os receptores responsáveis pela infecção do coronavírus também estão presentes na parede que reveste o intestino. A partir da infecção por Sars-CoV-2, tem-se um aumento da expressão desses receptores, que começam a competir entre si. Isso acaba gerando uma relação não compensada, desregulando o sistema natural. "O microbioma intestinal começa a sofrer uma proliferação dessas bactérias mais invasivas, e, em maior quantidade, elas conseguem invadir o epitélio intestinal. Da parede do intestino, os germes podem ter contato com a corrente sanguínea e causar infecções que são extremamente graves", detalha.
Nos experimentos com camundongos, os pesquisadores descobriram que a infecção por Sars-CoV-2 danifica as células do revestimento do intestino. Segundo Jonas Schluter, outro coautor sênior da pesquisa, foram observadas mudanças ainda mais graves nos pacientes avaliados: "Isso pode permitir que as bactérias vazem para o sangue. Sabe-se que essa complicação acomete outros pacientes que, como os de covid, são imunocomprometidos. Por exemplo, bactérias intestinais vazando para o sangue acontecem em pessoas com câncer hospitalizadas".
A partir dos resultados, os cientistas pretendem estimular melhorias potenciais no atendimento de infectados pelo Sars-CoV-2, considerando o uso de menos medicamentos antibacterianos para evitar lesões desnecessárias no intestino. "Esperamos que estudos como o nosso informem quando e como administrar antibióticos com segurança e nos preparem melhor para futuros surtos e pandemias", afirma Cadwell. "Também estamos muito interessados em entender como vários órgãos se comunicam e por que algumas pessoas são vulneráveis a problemas intestinais enquanto outras parecem estar bem."