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porto velho, segunda-feira 24 de novembro de 2025
Ele era entregador de água, tinha 23 anos e nenhum antecedente criminal. Mesmo assim, Leandro foi morto com um tiro na cabeça durante a ‘Operação Contenção’. Sua história não é um caso isolado; é o rosto de uma política de segurança que escolheu a morte como método. No dia 29 de outubro de 2025, a mãe de Leandro, Dona Maria, chegou à delegacia com uma foto antiga dele. Ele apenas morava lá. Isso bastou para incluí-lo entre os 121 mortos da operação. Um agente lhe disse, com um papel amassado: “Estava na área da operação.” Fim da história.
Em outro plano, entre os mortos, estavam também policiais jovens que, como Leandro, foram lançados a uma guerra que não escolheram. São vítimas de uma política que transforma comunidades em campos de batalha e agentes em soldados descartáveis. Para sustentar a narrativa oficial, seus nomes são lembrados em solenidades, enquanto os moradores como Leandro permanecem invisíveis, reduzidos a estatísticas. Definitivamente, entendi que a contabilidade de mortos em operações de larga escala não tem como ser assimilada como um dado estatístico, é um sintoma de escolhas políticas que exigem escrutínio sobre a necropolítica estatal nessas decisões de governo.
Enquanto Dona Maria chorava na porta da polícia, autoridades comemoravam o “sucesso estratégico” da ação. Mas nenhum líder relevante do Comando Vermelho foi capturado e o que pareceu importar eram os drones mostrando favelas vazias como o cenário ideal para a abertura da Cúpula do Clima (C40). Este texto é sobre o abismo entre a dor da mãe e a narrativa do poder. É sobre o que significa viver em um país onde “bandido bom é bandido morto” virou outra via para necropolítica pública.
Resolver a criminalidade pela morte?
O choque de ver centenas de mortos em uma única operação coloca uma pergunta ética e política que atravessa a sociedade: estamos dispostos a aceitar a eliminação de vidas como resposta ao crime, ou a construir instituições capazes de reduzir a violência sem sacrificar o Estado de direito?
Demorei a trazer este texto porque os eventos são muitos e exigiram estudo cuidadoso. Mas convido você a seguir comigo: não podemos esquecer as mortes em operações de “pacificação” de comunidades vulneráveis, como a “Operação Contenção” no Rio de Janeiro em outubro de 2025. E não se trata apenas do Rio; Rondônia também revela como a lógica da guerra contra o crime se espalha pelo país, seja nas operações contra facções, seja nas lembranças ainda vivas da chacina do Urso Branco, quando 27 presos foram mortos em 2002.
O que está em jogo não é apenas a contabilidade de mortos, mas o modelo de segurança pública que sacrifica vidas de ambos os lados (moradores e policiais) sem oferecer alternativas duradouras. É nesse ponto que precisamos decidir se aceitaremos a política da morte como solução ou se clareza quanto a coragem necessária para construir caminhos civilizados para enfrentar a violência.
Força letal e legitimidade do Estado
A recente megaoperação policial no Rio de Janeiro, que resultou em 121 mortes nos complexos da Penha e do Alemão, reacende o debate sobre o uso da força letal pelo Estado e sua legitimidade em contextos urbanos marcados pela desigualdade e pela presença de facções criminosas. A operação, considerada a mais letal da história do estado, foi justificada pelas autoridades como uma ação legítima para cumprimento de mandados judiciais, mas gerou forte repercussão nacional e internacional, com críticas sobre a proporcionalidade da força empregada e a ausência de garantias processuais para os mortos.
Quando a eliminação física de suspeitos se torna prática recorrente, o que está em jogo foge da ideia de eficácia da segurança pública, e se aproxima dos limites éticos que uma sociedade está disposta a preservar. A ideia de que a morte de “bandidos” resolve o crime ignora o papel do Estado como garantidor de direitos, inclusive diante da violência.
O discurso que normaliza execuções como resposta legítima à criminalidade não apenas simplifica um problema complexo, como também desvia o foco das causas estruturais que sustentam o ciclo da violência. A presença de civis entre os mortos, o uso desproporcional da força e a ausência de transparência institucional não podem ser tratados como efeitos colaterais inevitáveis. São sinais de que o pacto democrático está sendo tensionado.
A marca da violência e o “alívio” social?
A “Operação Contenção” mobilizou 2.500 agentes por 72 horas. O saldo foi de 121 mortos (entre civis e suspeitos), 4 policiais mortos, 123 presos, 47 fuzis apreendidos e 15 toneladas de drogas confiscadas. Mas meses depois, o Comando Vermelho seguia operante. O Rio não ficou mais seguro. A pergunta que persiste é: quem eram os mortos?
Relatórios oficiais omitem idade, raça e ocupação das vítimas. Mas investigações independentes revelam um padrão. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ), 78% das mortes por ação policial no estado são de homens negros. Em operações em favelas, esse percentual sobe para 85%. A faixa etária predominante é de 18 a 35 anos. A maioria das vítimas tem ocupações informais e, em muitos casos, não possui antecedentes criminais relevantes. Esses dados não são especulação. São evidência. A juventude negra periférica é o alvo recorrente. E isso não é acaso. É padrão executorial. Cansativo? Sim. Já era para termos aprendido sobre isso.
Há um caminho sem sangue?
A lógica punitiva que falha no Rio é replicada em Rondônia, porque a criminalidade se profissionalizou enquanto a desordem estatal se consolida. Entre 2021 e 2024, operações como FICCO/RO e Flash Point deixaram centenas de mortos. A Operação Flash Point, deflagrada em abril de 2025, mobilizou cerca de 300 agentes da Polícia Civil com apoio do Ministério da Justiça e da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
Foram cumpridos 103 ordens judiciais, incluindo 59 mandados de prisão preventiva e 44 de busca e apreensão em cidades como Porto Velho, Vilhena, Ariquemes e Cacoal. O objetivo era desarticular facções como o PCC e a Tropa da Revolução. Apesar da força da operação, os homicídios em Rondônia aumentaram significativamente: de 643 em 2021 para 916 em 2024, segundo dados compilados por veículos locais e boletins da Secretaria de Segurança Pública. Mais mortes. Mais insegurança. Rondônia virou laboratório da falência do modelo. O que se vende como “mão firme” entrega caos territorial e disputa entre facções menores.
A experiência internacional desmente o fundamento da força bruta. Alemanha e Japão, com polícias de baixíssima letalidade e altíssima taxa de resolução de crimes, investem em inteligência, investigação e prevenção. O resultado são cidades mais seguras, populações mais confiantes e instituições mais fortes.
O oposto também é verdadeiro. Jamaica e Filipinas adotaram a “guerra às drogas” como política de Estado. O saldo foi explosão de homicídios, colapso da confiança pública e fortalecimento de milícias e cartéis. O Brasil caminha na mesma direção. E os dados mostram que não é um caminho de segurança. É um atalho para o abismo.
Sim, a alternativa não está em negar a gravidade do crime, mas em recusar o método da guerra como política pública. Investigações independentes, protocolos que preservem vidas, inteligência qualificada e políticas sociais de longo prazo não são concessões: são exigências mínimas para que o Estado preserve sua legitimidade e não se torne aquilo que pretende combater.
Como o mundo encara matar “bandidos” e a pena de morte?
A maioria dos países já aboliu a pena de morte ou a suspendeu na prática; contudo, há um conjunto significativo de nações que mantém e aplica execuções regularmente, incluindo Irã, Arábia Saudita, China e, em grau distinto, os Estados Unidos e alguns países do Sudeste Asiático.
Nos países que praticam execuções com alguma regularidade, o argumento público dominante costuma ser de segurança pública, dissuasão e defesa do Estado; o respaldo popular e político a penas extremas frequentemente deriva de altos índices de criminalidade, narrativas de “ordem” e instituições judiciárias/políticas com menor tradição de garantias processuais consistentes.
Dados gerais desses Estados mostram perfis variados: alguns têm alta densidade populacional e grande PIB (China); outros combinam renda per capita intermediária com regimes autoritários ou forte centralização política (Arábia Saudita, Irã); democracias com pena de morte (EUA, Japão) apresentam tradição política diferente, com debates institucionais sobre revisão judicial e direitos civis e menores taxas de execução relativas à população.
O episódio da operação no Rio de Janeiro, na verdade ilustra como, mesmo em democracias que não adotam formalmente a pena de morte, práticas estatais podem se aproximar de execuções extrajudiciais, especialmente quando há respaldo político e social para ações de “neutralização” de suspeitos. A criação de um observatório pela OAB-RJ para acompanhar os desdobramentos da operação indica a necessidade de apuração institucional e reforça a importância de mecanismos de controle e transparência em ações de segurança pública
Diante de episódios como a operação no Rio de Janeiro marcada por alta letalidade, controvérsias institucionais e denúncias de violações de direitos e das recentes ações em Rondônia, que incluíram ofensivas contra facções criminosas e episódios de retaliação violenta, torna-se ainda mais evidente a urgência de integrar o conhecimento acadêmico à formulação de respostas públicas.
A superação do nexo “bandido bom é bandido morto” não é uma pauta ideológica. É uma exigência científica. Pesquisas do NEV-USP, da UNIR e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstram que operações letais não reduzem a violência. Rondônia é uma prova cruel dessa falência.
Como a Ciência pode responder ao desafio?
O saber produzido nas universidades, especialmente em cursos e conteúdos voltados aos direitos humanos e à segurança pública, não pode permanecer restrito ao debate interno. Ele deve ser mobilizado para qualificar políticas públicas, formar agentes críticos e propor alternativas que enfrentem o crime sem corroer os fundamentos do Estado de direito.
A retórica da força como solução única empobrece o debate e obscurece caminhos mais eficazes, sustentáveis e compatíveis com os princípios democráticos. Em momentos em que o Estado se vê tentado a responder à violência com mais violência, o papel das universidades torna-se ainda mais requisitado, ao contrário da opção por silêncio.
A universidade é, por excelência, o espaço onde se pode pensar com profundidade sobre os limites da ação estatal, os dilemas da justiça e as possibilidades de transformação social. Elas não apenas formam profissionais, mas produzem conhecimento capaz de iluminar caminhos que escapam ao raciocínio imediatista da repressão.
A ciência aponta outro caminho: policiamento comunitário, inteligência criminal, reforma do sistema prisional e políticas de prevenção. São Paulo, entre 2006 e 2010, reduziu homicídios em 34% sem massacres. Investiu em investigação, prendeu líderes vivos, desarticulou redes financeiras do PCC. Funcionou. Rondônia fez o oposto. E fracassou.
Contexto local.
É possível ilustrar meus argumentos diante da presença, por exemplo, dos Programas de Pós-graduação entre os quais, o de Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça da Universidade Federal de Rondônia (DHJUS/UNIR) porque exemplificam como a produção acadêmica pode dialogar com os desafios concretos da segurança pública. Ao reunir profissionais do sistema de justiça e promover pesquisas aplicadas, o Programa contribui para qualificar o debate e propor soluções que respeitem os marcos legais e os direitos fundamentais.
Diante de episódios como a operação no Rio de Janeiro, marcada por alta letalidade e controvérsias institucionais, é ainda mais urgente que o conhecimento produzido nas universidades não permaneça confinado nas bolhas acadêmicas. Ele precisa – deve! - ser mobilizado para orientar políticas públicas, formar agentes críticos e oferecer alternativas que não sacrifiquem o Estado de direito em nome de uma falsa sensação de ordem.
A Universidade Federal de Rondônia, por meio de seus pesquisadores, cumpre reafirmar que o caminho da repressão letal é um beco sem saída. A ciência já mostrou. Cabe à política escutar. Se a ciência mostra que há caminhos mais inteligentes e humanos. Cabe a nós, como cidadãos, parar de aceitar a barbárie como solução.
A verdadeira segurança vem da aplicação da lei com inteligência. Vem do respeito à vida. Vem do investimento em dignidade. Dona Maria não pediu vingança. Pediu explicação. O Estado deu silêncio.
Portanto, questionemos, exijamos transparência porque cabe a nós, cobrar dos gestores uma segurança pública que proteja vidas, em vez de colecionar corpos. A paz não pode ser construída sobre uma montanha de cadáveres e famílias que esperam sem esperanças seus filhos e filhas retornarem para casa.
Saiba Mais.
Sobre a Megaoperação no Rio de Janeiro (2025)
MATAIS, Andreza. Quase 90% dos moradores de favelas do Rio apoiam operação contra o CV. Metrópoles, 31 out. 2025. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/andreza-matais/quase-90-dos-moradores-de-favelas-do-rio-apoiam-operacao-contra-o-cv. Publicada em: 31 out. 2025.
VEJA. Como a imprensa internacional tem repercutido megaoperação policial no Rio de Janeiro. Veja, 28 out. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/como-a-imprensa-internacional-tem-repercutido-megaoperacao-policial-no-rio-de-janeiro/. Publicada em: 28 out. 2025.
FOLHAPRESS. Ação policial no Rio de Janeiro deixa 64 mortos; saiba tudo sobre a operação mais letal da história do estado. Banda B, 28 out. 2025. Disponível em: https://www.bandab.com.br/naci...; Publicada em: 28 out. 2025.
CEILÂNDIA EM ALERTA. IML identifica 100 dos 121 mortos na maior chacina policial da história do RJ. Ceilândia em Alerta, 31 out. 2025. Disponível em: https://www.ceilandiaemalerta.com.br/noticias/31/10/2025/iml-identifica-100-dos-121-mortos-na-maior-chacina-policial-da-historia-do-rj/. Publicada em: 31 out. 2025.
COELHO, Henrique et al. Megaoperação no RJ: veja a lista de corpos identificados. G1, 31 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/10/31/lista-mortos-identificados-megaoperacao-rj-penha-alemao.ghtml. Publicada em: 31 out. 2025.
BOAS, Pedro Vilas et al. Mortos, presos, corpos liberados: os números atualizados da operação no Rio. UOL, 31 out. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/10/31/numeros-megaoperacao-rio.htm. Publicada em: 31 out. 2025.
MOURA, Manuela; GRIGORI, Pedro. Operação mais letal do RJ joga segurança no centro da disputa política. Metrópoles, 29 out. 2025. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/operacao-rj-disputa-politica. Publicada em: 29 out. 2025.
FARIA, Glauco. Especialista desmascara o uso político-partidário das megaoperações policiais no Rio. Revista Fórum, 28 out. 2025. Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/2025/10/28/especialista-desmascara-uso-politico-partidario-das-megaoperaes-policiais-no-rio-190809.html. Publicada em: 28 out. 2025.
DIÁRIO DO NORDESTE. Operação no Rio de Janeiro ocorre 15 anos após ocupação do Complexo do Alemão. Diário do Nordeste, 28 out. 2025. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/ultima-hora/pais/operacao-no-rio-de-janeiro-ocorre-15-anos-apos-ocupacao-do-complexo-do-alemao-1.3704060. Publicada em: 28 out. 2025.
Facções criminosas e violência em Rondônia
RONDONIAGORA. MPRO denuncia e Justiça condena 16 pessoas por organização criminosa em Pimenta Bueno. Rondoniagora, 31 out. 2025. Disponível em: https://www.rondoniagora.com/cidades/mpro-denuncia-e-justica-condena-16-pessoas-por-organizacao-criminosa-em-pimenta-bueno. Publicada em: 31 out. 2025.
POLÍCIA FEDERAL. FICCO/RO deflagra operação em combate a facções criminosas em Rondônia. Gov.br, 22 jan. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2025/01/ficco-ro-deflagra-operacao-em-combate-a-faccoes-criminosas-em-rondonia. Publicada em: 22 jan. 2025.
Chacina no Presídio Urso Branco (2002)
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