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    porto velho, sexta-feira 21 de novembro de 2025

Crônica de fim de semana: o último corte de Elmar - por Arimar Souza de Sá

Há pessoas que passam pela nossa vida como brisas tímidas. Outras chegam como ventos bons — daqueles que ajeitam a poeira da alma. Elmar Gonçalves era exatamente esse vento...


Arimar Souza de Sá

Publicada em: 21/11/2025 17:16:41 - Atualizado

Crônica de Fim de Semana: O último corte de Elmar - por Arimar Souza de Sá

Há pessoas que passam pela nossa vida como brisas tímidas. Outras chegam como ventos bons — daqueles que ajeitam a poeira da alma, levantam o ânimo e, sem pedir licença, colocam tudo em ordem dentro da gente com um simples corte de cabelo. Elmar Gonçalves era exatamente esse vento.

Paraense de raiz funda, desembarcou em Porto Velho, vindo de Marabá, ainda adolescente, trazendo mais esperança que bagagem. No SENAC de Porto Velho descobriu o ofício que seria sua marca registrada: cortar cabelos como quem esculpe um diamante, alinhando fios e pensamentos com a mesma delicadeza de um artesão.

Começou no Salão Miros Cabeleireiro e depois acabou circulando por salões emprestados e cadeiras alheias, até que, no silêncio e na persistência, ergueu seu próprio espaço. Era o salão — mas também era o porto seguro de muita gente. Ali, entre espelhos e tesouras, a vida parecia ganhar contornos mais nítidos.

Casado com Francinete, pai do pequeno Nikolas, de 12 anos, Elmar foi conquistando prestígio sem jamais perder a simplicidade. Era comum encontrar uma autoridade na cadeira: Dr. Gilberto Baptista, Dr. Novaes, deputado federal Fernando Máximo, Luiz Cláudio, José Lacerda, Dr. Milton Moreira, Josemar Monteiro, Sid Orleans, Solano Ferreira… todos atraídos por algo maior que a técnica: era o trato, era a alma, era a cabeleira repaginada.

Eu mesmo, por quase 25 anos, voltava a cada vinte dias. Elmar me recebia com festa sincera, como quem reencontra um irmão que a vida insiste em espaçar. Lia minhas crônicas, comentava-as, acompanhava meus programas no rádio e parecia, de alguma forma, enxergar o melhor de mim — antes mesmo que eu chegasse — e ainda propagava isso para seus demais clientes.

Mas há despedidas que só a intuição sinaliza. Eu estava marcado para sábado, 22/11, às 18h, no salão do Lobato, seu parceiro de cadeira e tesoura. Porém, na quarta-feira, às 18h29, recebi seu telefonema:

— Arimar, não quer adiantar o corte?

— Mas estamos marcados pro sábado…

— Rapaz, tô com saudade do nosso papo. Vem cá.

Desliguei, mas ele, como menino ansioso, ligou de novo:

— Vem agora. Abriu uma vaga. E tu és detalhista com teu corte.

E fui. Quando perguntei se atenderia mais alguém depois de mim, respondeu:

— Não! Estava te esperando. Você é o último. E era mesmo. O último corte!

Na manhã seguinte, a vida me golpeou sem aviso: Elmar havia falecido, vítima de um infarto logo que saiu do salão e chegou em casa. A notícia entrou como vento frio por uma fresta que eu acreditava estar fechada.

Mas o dia ainda guardava mais sinais. No velório, conversei longamente com Francinete, sua esposa. Entre lágrimas contidas e lembranças que brigavam para não escapar, ela me contou que Elmar passou a semana inteira antecipando cortes, chamando clientes antes da hora — um comportamento completamente fora do seu padrão. Como se um relógio invisível estivesse apressando seus passos, pedindo que concluísse, silenciosamente, tudo o que ainda podia fazer.

E então veio o golpe mais duro: ver Nikolas, com apenas 12 anos, parado diante do caixão do pai. Aquele olhar perdido, órfão antes do tempo, procurando o pai em algum lugar onde ninguém alcançava mais. Um menino tentando entender um vazio que nem adultos conseguem compreender. Ali percebi que, quando a morte chega cedo demais, não leva apenas uma vida — leva um eixo, desalinha o universo de quem fica.

Naquela noite, já em casa, o corpo cansado cedeu ao primeiro sono. Mas o restante da madrugada… ah, esse não me pertenceu. Amanheci lembrando dos papos, das risadas, das observações certeiras que ele fazia enquanto a tesoura deslizava como vento leve na minha cabeça.

Elmar não fazia fofoca. Não comentava mal da vida alheia. Era informado, politizado, atento ao mundo, mas tinha a elegância de quem sabe que opinião não é arma — é farol. E, no seu jeito meticuloso, parecia colocar um esquadro ou um prumo na cabeça dos clientes, alinhando mais que o corte: alinhando o humor, o espírito, a vida.

Elmar partiu cedo — cedo demais. Aos 47 anos. Com tantos cortes ainda por fazer, tantas conversas para continuar, tanta vida por entregar. E, de todas as crônicas que já escrevi, esta será, certamente, a única que ele não vai curtir nem comentar. E como dói escrever isso.

Agora, no instante em que estou finalizando as últimas linhas desta crônica, resta a sensação amarga de que a vida, às vezes, é uma lâmina cega: corta onde não deve, fere sem intenção e nos deixa tentando recompor o que não volta mais.

Que Deus o receba pela porta da frente. E que nós, aqui, saibamos reconhecer quando um gesto simples — uma ligação, um convite, um adiantamento inesperado — é, talvez, o último aceno de alguém que o fim da vida já estava chamando. Às vezes, a vida sussurra avisos que só entendemos tarde demais, pequenos toques que parecem corriqueiros, mas carregam a delicadeza de um adeus disfarçado. O fato aqui narrado, certamente, foi um sinal terno e silencioso de que um último corte está por vir, como eu próprio experimentei.


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