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Crônica de Fim de Semana - A Morfologia do Medo Amazônico - Arimar Souza de Sá

Assim, vieram aportar por aqui os “soldados da borracha”. Chegaram amontoados nos navios, redes por sobre redes...


Publicada em: 28/06/2020 00:49:45 - Atualizado

CRÔNICA DE FIM DE SEMANA
A MORFOLOGIA DO MEDO AMAZÔNICO
- Arimar Souza de Sá

O medo sempre foi imanente ao plexo amazônico, desde os tempos dos seringais, em que a atividade “gomífera” – assim denominada a extração da borracha nativa – representava o único produto econômico forte do alto Amazonas, incluindo o Acre e Rondônia.

Medo, misturado à fé e à coragem, faziam o amálgama no coração do seringueiro, muitas das vezes cruzando os alagados, em busca das melhores árvores, a pé ou em canoas puxadas a remo, onde ele penetrava na floresta imensa, numa disputa de espaço com as enormes sucuris, jacarés, onças pintadas, pretas e vermelhas, pacas, veados e antas, e as lontras, que os nativos chamavam de ariranha.

Medo, em “terra firme”, das flechadas dos índios e das cobras venenosas, como a temível “pico de jaca”, sempre prestes a alcançá-los, em suas “colocações” ou “estradas” de seringa, que percorriam religiosamente todas as madrugadas, para tirar o precioso “leite”, apenas com sua “poronga” na cabeça, as tijelinhas no embornal, a espingarda à bandoleira, e FÉ em um Deus maior que tudo aquilo.

À noite, no silêncio, às vezes vinha ainda o medo de receber a visita do lendário e terrível macaco gogó de sola, e dos bandos de caititus e queixadas, que destruíam, com seus poderosos dentes, quem se atrevesse a cruzar o seu caminho.

Para completar essa morfologia do medo amazônico, a febre, quase sempre mortal. A amarela, a tifóide e a malária faziam folia, e no consórcio com o beribéri ceifavam vidas, impiedosamente, nos confins das matas.

Nesses campos de batalha, seria preciso um termômetro do tamanho do mundo para medir a febre provocada pelos carapanãs, e o “desgracente”, coitado, tremendo como uma vara verde trincava-se de dor sem o socorro necessário.

Medo, enfim, da morte, posto que os seringueiros, jogados na “hinterlândia” como reses nos campos, sem o amparo de ninguém, sucumbiam no pulmão da mata, sepultados quase sempre em covas rasas ao pé de uma árvore qualquer, debaixo do silêncio.

Getúlio Vargas, o ditador populista, ampliou ainda mais essa tragédia do medo na região, convocando a pobreza nordestina, ancorado em promessas de riquezas com a extração do látex, para alimentar o esforço de guerra.

Assim, vieram aportar por aqui os “soldados da borracha”. Chegaram amontoados nos navios, redes por sobre redes e, como os escravos de tempos remotos, foram entregues à sanha dos famosos “coronéis de barrancos”, donos dos seringais...

No remontar dessa história, é fato que, para qualquer guerra, os soldados vão com apoio de retaguardas para recolher os feridos e tratá-los, mas nessa batalha da hinterlândia, não havia retaguarda, nem médicos, nem enfermeiros, e o pior, nem remédios.

O tratamento, então, ficava por conta da pajelança dos curandeiros, e dos chás de ervas das “rezadeiras”, que faziam milagre.

Eis aí a saga do homem amazônico, parido das tripas do medo... Quanta falta de respeito! A história não registra a tragédia, posto que pobres, para os grandes, não contam história, nem ontem, nem hoje, nem sempre.

Tudo que retrato aqui, sem fantasias, era um embate de feras, as que chegavam – homens, foices, facões e machados - e as que já estavam aqui, como guardiãs das florestas: os índios, as cobras, lagartos, espinhos e urtigas, para defender seu território do camarada “ofensor”.

No meio do caminho a morte ia deixando seu rastro. Na prática, era o horror mastigando o próprio horror. É de se dizer que os que escaparam dessa contenda (seringueiros e soldados da borracha), foram imunizados pela “vacina” contra a morfologia do medo amazônico, deles restando filhos, netos e bisnetos, muitos ainda hoje vivendo nesse isolamento de matas, rios e cachoeiras.

O costume dessa embriaguez de medo amazônico talvez nos permitisse estar vacinados contra as pragas do mundo. Ledo engano, eis que, num simples lampejo estamos a pelejar com outra etapa histórica de patologias, agora, através de um vírus letal que a ciência apelidou de Coronavírus.

Assim surge um novo espaço para o medo e aflição dos amazônicos. Nesse contexto, estamos vivenciando uma bagunça universal.

É que sem conhecimento específico para debelar o mal, os profissionais de saúde, apesar do esforço, se assemelham aos curandeiros do viver amazônico. Sabem muito pouco ou quase nada sobre a peste, fato que desconstruiu a nossa fé de que a semente deixada por Hipócrates seria capaz de gerar a salvação do mundo.

A parafernália tecnológica que vasculha os pedaços de nós mesmos, nesta hora deixa de ser útil para adentrar ao universo de mentiras, que se erguem pelas mãos dos oportunistas do dinheiro púbico, nesse campeonato onde o adversário de tão forte, mata, fica impune, e eles ainda ganham.

Que Deus e os santos se revelem novamente, antes que as valas não caibam mais gente, e ricos e pobres, enfim, se juntem no caminho da eternidade, onde o medo seja apenas uma palavra do passado, e não o símbolo da anunciação do fim dos tempos.

QUE NÃO SEJA NUNCA COMO ELES QUEREM!

AMÉM!.

email: arimardesa@hotmail.com


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