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porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
PORTO VELHO, RONDÔNIA - Nesta época do ano eclodem dores já conhecidas. Dores de solidão, dores de frustração, dores de medo, de dívidas, dores de aparência que não corresponde aos padrões da mídia.
É como se algumas só aumentassem, outras pulassem de fora para dentro de nós. Por que isso acontece? Proponho algumas reflexões: Do mês de outubro em diante, começam as propagandas e promoções motivadas pela necessidade de aumentar as vendas e captar consumidores, custe o que custar.
Se fosse algo restrito ao comércio ainda seria razoável.
O assustador é a proporção que toma no nosso cotidiano.
E vem as músicas e mensagens de conteúdo consumista embaladas em mistério, imagens de velhos, crianças, animais fofos, casais se reconciliando,famílias se encontrando em volta de lindas mesas, evocando uma ternura que é em verdade maliciosa, já que provoca emoções e se impregna no cérebro junto com a imagem do produto a ser comprado.
São campanhas e anúncios frutos de muitos estudos sobre imagens e linguagens publicitárias e como obter do público a reação desejada, em poucos segundos de projeção de imagens, sendo jogados aos montes, em todas as janelas onde nos debruçamos(smartphones, notebooks, TVs). Na maior parte das vezes, as mensagens são tão bem recebidas que já se criou até o slogan “magia do Natal” para eufemizar o desespero e a melancolia que tomam conta de muitos nesta época.
Lojas ficam abertas até tarde sugerindo urgência, uma sensação de como o ano vai se acabar, vai levar junto todas as chances de sentar numa cadeira nova, usar o micro-ondas mais sofisticado; calçar o scarpin perfeito.“Compre logo!”É uma onda apocalíptica.É como se o mundo fosse acabar em 31 de dezembro. “Última chance!”Diz um anúncio na faixa afixada à porta da loja de móveis.
É como se o público é que dependesse daquela última chance, e não a loja, de vender seus produtos, pagar 13ºde funcionários, fechar o balanço contábil no positivo. É dessa inversão de papéis que se revestem alguns sucessos de vendas de fim de ano.
Como isso vai sendo introjetado por nós, a cada dia, é que se desenha a face verdadeira e monstruosa da mensagem capitalista e anti cristã: É pai e mãe se endividando para comprar o videogame para o filho; é adolescente sofrendo porque não vai ter celular mais avançado; é homem ruminando sofrimento porque não arranjou uma companheira para ter uma linda mesa de Natal;é criança se questionando por que o Papai Noel nunca foi na sua casa; solteiros solitários de todos os gêneros esgotando o cartão de crédito em passagens para fora do país à procura de um lugar lindo e cheio de neve para escapar das cobranças de casar, ter filhos, ter apartamento próprio; é jovem desiludido porque não conseguiu pontos suficientes no ENEM, como se nunca mais houvesse uma chance de fazer o que não fez.
É o outro lado, é a consequência da inversão de prioridades, de papéis, de valores. Melancolia, frustrações de não ter realizado planos e sonhos no ano que se encerra.
A pergunta despretensiosa“onde você vai passar o Natal?” Vem em cheio para quem está já espremido pelo assedio midiático e das redes sociais. O desconforto para responder, quando não se tem uma vida que se encaixe nas ilusões já descritas, por vezes tem o peso da avaliação negativa de si mesmo, da aparência, da construção de vida até o momento, da dúvida sobre sua capacidade de manter sua família feliz.
O natal e o ano novo ficam como sendo um selo apocalíptico que invalida todos os planos a médio e longo prazo. É a expressão máxima da pressa.
Talvez seja por isso que todas as conhecidas dores eclodem no fim do ano. É preciso uma reflexão profunda e corajosa diante de cada ataque midiático ao nosso equilíbrio para sobrevivermos sem perder a esperança.
O mundo não vai acabar. O smartphone desejado não vai se desmaterializar na loja se você não comprar.
O ano vai ser declarado encerrado e o novo ano será declarado iniciado. É o modelo Gregoriano de calendário vigente.
E como a humanidade vive atribuindo significados e inventando rituais para tudo, a gente vê uma serie de formas de realçar esta mudança de dia, mês e ano. Rituais de todos os tipos. Rituais tem o seu lugar e sua importância em nossa vida.
O problema é quando estes rituais excluem os que não se encaixam.
Nenhuma mágica vai acontecer. A família linda ao redor da grande mesa é só uma representação. Se sua família não vai mesmo reproduzir este modelo, saiba que muitas não se encaixam e nem por isso deixam de funcionar como espaço de relações acolhedoras, fraternas, curativas para nossas dores.
E se não houver família parental, há famílias de laços. E amigos de verdade. Poucos como devem ser os encontros realmente especiais: libertadores, divertidos, protetores.
Sempre haverá o dia seguinte. O ENEM tem todo ano. O mundo tem em torno de 7,6bilhões de pessoas, segundo a Organização das Nações Unidas.
Todos os dias há oportunidade de conhecer alguém interessante nos diversos graus e modalidades de envolvimento: interessante como companhia para dar risadas, ir caminhar no espaço alternativo, ir para o samba no mercado cultural, ir na igreja, no centro espírita, no terreiro, na sinagoga, cuidar de plantas juntos, assistir séries engraçadas, e até alguém para namorar gostoso...
Que nossa vida tenha sentido renovado a cada dia, independente de calendários, festas, promoções... que saibamos acolher e resolver nossas dores e saudar todas as maravilhas que nos acontecem todos os dias.
[1] Enfermeira, doutora em desenvolvimento socioambiental; Coordenadora do Observatório de Violência, Saúde e Trabalho – OBSAT/UNIR, voluntária do Núcleo de Apoio à Vida de Porto Velho -NAVIPORTO