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porto velho, quarta-feira 27 de novembro de 2024
BRASIL -A 17ª Vara Cível Federal de São Paulo, no final de abril, em liminar, proibiu a Polícia Federal de representar pela prisão administrativa para expulsão de estrangeiros do Brasil. Tais medidas se baseavam em uma regra considerada ilegal de um decreto e foram contestadas pelo Ministério Público Federal.
A expulsão é o ato administrativo que obriga o estrangeiro a se retirar do território do país e não retornar. Ela é voltada àqueles que tenham sido condenados, com sentença transitada em julgado, e já tenham cumprido a pena por crimes de genocídio, de guerra, contra a humanidade ou de agressão; ou por crime comum doloso que gere pena privativa de liberdade.
O antigo Estatuto do Estrangeiro, de 1980, permitia que o ministro da Justiça decretasse a prisão do forasteiro para assegurar a execução da medida de expulsão. Na ação civil pública, o MPF argumentou que a prisão administrativa foi extinta a partir da nova Lei de Migração, de 2017.
Mesmo assim, os requerimentos para prisões administrativas não deixaram de ser emitidos. Os delegados federais vinham se baseando no Decreto 9.199/2017, que regulamenta a Lei de Migração. O artigo 211 da norma permite que a PF formule tais pedidos à Justiça.
Segundo o MPF, não haveria autorização legal ou constitucional para as prisões administrativas. Ou seja, a regra do decreto possibilitaria uma medida já banida pela legislação. "Toda e qualquer segregação depende de decisão do Poder Judiciário", diz a petição inicial.
As prisões administrativas são uma arma da PF para garantir que os estrangeiros permaneçam sob custódia após o término das penas e evitar que fiquem foragidos até a conclusão dos trâmites para a expulsão. Nos últimos cinco anos, pelo menos 11 estrangeiros foram presos nesta modalidade — o MPF relatou dificuldade para identificar o número exato.
Decisão
Na liminar, o juiz Ricardo de Castro Nascimento explicou que há um "silêncio eloquente" da Lei de Migração quanto à prisão administrativa cautelar do estrangeiro submetido ao processo de expulsão — ou seja, a lei não traz qualquer menção à medida.
"A opção legislativa foi pela revogação desta espécie de prisão", assinalou Nascimento. Além disso, o artigo 123 da norma estabeleceu que "ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias, exceto nos casos previstos nesta lei".
Dessa forma, o decreto teria extrapolado seu poder regulamentar, pois manteve uma modalidade de prisão já extinta pela lei. "Parece até que, neste particular, o Decreto 9.199/2017 regulamentou o revogado Estatuto do Estrangeiro ao invés da nova Lei de Migração", apontou o magistrado.
A União argumentou que a regra do decreto teria fundamento de validade no artigo 48 da Lei de Migração, que autoriza a PF a representar perante o Juízo federal nos casos de expulsão ou deportação — que é a determinação de saída compulsória ao estrangeiro que entra ilegalmente no país.
Porém, Nascimento ressaltou que a prisão administrativa cautelar não seria uma providência passível de requerimento na representação da PF. "O dispositivo genérico não tem o condão de dar sobrevida à prisão administrativa revogada", assinalou.
O juiz ainda citou decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que reconheceram o fim da prisão administrativa cautelar para expulsão de estrangeiro.
Entendimento respaldado
A advogada Marielle Brito, especialista em Direito Internacional e em revogação de prisão de estrangeiros, concorda com o MPF e o juiz: "Não existe qualquer previsão legal que autorize prisão administrativa para fins de expulsão".
De acordo com Brito, o decreto, no ponto em que prevê a representação da autoridade policial pela prisão, é ilegal e inconstitucional. Ela lembra que, conforme o inciso IV do artigo 84 da Constituição, a edição de decretos ou regulamentos se destina à fiel execução da lei. "Ou seja, não podem disciplinar acerca de assunto não previsto na lei à qual estão vinculados", indica.
Ao extrapolar a lei que deveria regulamentar, o decreto também ofenderia o princípio constitucional da reserva legal (inciso II do artigo 5º), segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Para a advogada, as prisões ainda violam a separação dos poderes.
Pablo Eduardo Pocay Ananias, advogado que trabalha com casos de imigração no escritório Gabardo & Terra Advogados Associados, tem opinião similar. Ele lembra que a Lei de Migração não fala em prisão cautelar quanto à expulsão, mas a menciona, no artigo 84, com relação à extradição — que é a saída compulsória do estrangeiro em virtude de crime cometido em outro país, quando há pedido para recebê-lo de volta.
"Quando a lei quis autorizar a prisão cautelar, o fez expressamente. E, se a lei não prevê prisão cautelar na expulsão, não pode o decreto regulatório inovar ao prevê-la", explica.
Além disso, se a lei quisesse autorizar a prisão para expulsão, poderia simplesmente ter repetido o artigo 69 do antigo Estatuto do Estrangeiro, que permitia o procedimento. "Como isso não ocorreu, seu silêncio diz mil palavras", afirma Pablo.
Quanto ao argumento da União de que o artigo 48 da lei validaria a prisão, o advogado entende que tal interpretação seria "forçada", pois a redação do dispositivo é "demasiadamente abstrata". O artigo autorizaria apenas a representação para medidas necessárias à execução de expulsões já decretadas e com prazo encerrado para pedido de reconsideração — o que inclui a restrição de liberdade, desde que por prazo razoável.
Medida indesejada
Já o advogado Pedro Lazarini Neto — especialista em Direito Penal Internacional que atua com extradição, expulsão, asilo, deportação e crimes de guerra — vai além: para ele, a prisão administrativa não existe mais desde a promulgação da Constituição de 1988. Isso porque o inciso LXI do artigo 5º estabelece que qualquer ordem de prisão deve ser escrita e fundamentada pela autoridade judiciária competente.
Na visão de Lazarini, apenas o Ministério Público poderia requerer tais prisões. O órgão seria titular não somente das ações penais, mas de quaisquer procedimentos relacionados ao estado de liberdade do indivíduo — incluindo aqueles oriundos de crimes passíveis de expulsão.
Ou seja, a autoridade policial não poderia ter essa atribuição. O delegado de polícia preside o ato administrativo e pode conduzi-lo, mas "em hipótese alguma" poderia chegar ao ponto de "cercear a liberdade do indivíduo, ainda que seja de maneira cautelar".
Segundo ele, nada impede que o delegado comunique o MP caso constate alguma atividade que justifique a decretação de prisão. No entanto, "quem decide sobre esse decreto não há como não ser o procurador da República".
Pablo Ananias também entende que a prisão administrativa nesses processos não deveria existir, já que as expulsões ocorrem apenas após o estrangeiro cumprir sua pena: "Para todos os efeitos, trata-se de um indivíduo que nada deve à Justiça".
Desde 1988, o ordenamento jurídico restringe a liberdade apenas em situações excepcionalíssimas, como em casos de risco à ordem pública ou à instrução de um processo judicial. "Não me parece ser esse o caso de um estrangeiro que já cumpriu a condenação criminal que lhe foi imposta", ressalta Ananias. Para ele, "o mero fato de estar preso sem amparo legal é, por si só, dano suficiente ao direito desses indivíduos".
Segundo o advogado, não se cogitaria prolongar o encarceramento de um brasileiro, mesmo que houvesse outras pendências legais de natureza não criminal. "Logo, por uma questão de isonomia, não me parece adequado restringir a liberdade do estrangeiro de uma maneira que não se restringiria a de um brasileiro", completa.
Direitos dos estrangeiros
Além da proibição às prisões administrativas, o MPF formulou outros pedidos na ação. Dentre eles, que a União fosse obrigada a incluir tópicos sobre o tema em cursos de formação e aperfeiçoamento de autoridades policiais e a implementar um sistema informatizado para identificar o número de prisões decretadas.
Pablo Ananias destaca, ainda, o pedido para que a União providencie, nos procedimentos de expulsão, os documentos informativos sobre os direitos dos estrangeiros, traduzidos para suas respectivas línguas. De acordo com ele, essa barreira linguística pode violar os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
"Se o procedimento de expulsão não pode ser compreendido pelo expulsando, não se está diante de um processo juridicamente legítimo, mas de um simulacro violador dos princípios informadores de nossa ordem jurídica", opina.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos possui um informe que prevê expressamente (item 99, "c") o direito à informação, tradução e interpretação para todos aqueles que estiverem sujeitos a procedimentos migratórios. Segundo Pablo, sem essa garantia, o Brasil estaria violando os tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais é signatário.