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porto velho, quinta-feira 28 de novembro de 2024
BRASIL: Faz mais de dois meses desde o primeiro caso de varíola do macaco (monkeypox) no Brasil, mas agora, com cerca de 3.000 infectados, é que começou a percepção de que os impactos da doença em quem é acometido vão além das lesões de pele, embora elas sejam motivo de preocupação permanente dos pacientes.
"Tive algumas bolhas na mão e no ombro. Posso dizer que meu caso foi leve, mas meu maior medo era acordar um dia e ter no rosto, ficar com alguma marca, uma cicatriz feia. Passei vários dias achando que iria ficar cheio de bolhas", conta Márcio, de 31 anos, que preferiu não ter o sobrenome divulgado.
Ele trabalha em casa e pôde lidar com o isolamento de 20 dias sem muitos problemas. Não foi o caso de outro homem ouvido pelo R7.
Henrique (nome alterado a pedido do entrevistado), de 28 anos, é comissário de voo e recebe o piso salarial da categoria. O valor é incrementado com a remuneração pelas horas voadas no mês, além de diárias por pernoites em outras cidades.
Sem poder trabalhar por quase quatro semanas, a empresa o encaminhou para o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que fica responsável pelo pagamento dos dias de trabalho que extrapolam os 15 primeiros dias de licença com atestado médico.
"Tem sido horrível, porque a doença em si já é meio traumática, você lida com um turbilhão de emoções. Aí, quando acha que o pior já passou, ainda tem essa parte de trabalho. Eu não tinha economias para passar tanto tempo assim sem trabalhar. Sempre fui muito independente, mas agora precisei pedir dinheiro aos meus pais. Isso tudo me deixou muito ansioso", conta.
Uma das características epidemiológicas da varíola do macaco neste momento, no Brasil e no mundo, é a predominância entre HSH (homens que fazem sexo com homens). Segundo o Ministério da Saúde, aqui, esse grupo representa 98% dos casos.
Isso não significa, em hipótese alguma, que as pessoas fora desse grupo não devam estar atentas. Trata-se de uma doença que se transmite por contato de pele e de mucosa, o que inclui atividade sexual, abraços e beijos, por exemplo.
Já foram registrados, em São Paulo, casos de monkeypox em grávidas e crianças, sendo que uma delas pegou a doença ao abraçar o tio, que não sabia que tinha sido infectado.
Márcio foi diagnosticado na metade de julho, duas semanas após participar de uma festa em que vários frequentadores, inclusive ele, estavam sem camisa.
"Quando eu peguei, já se falava que era uma doença que estava circulando muito entre os gays. [Após o resultado] eu sempre ficava pensando no que as pessoas pensariam de mim, que me julgassem, como se eu tivesse feito algo para merecer isso", lamenta.
A associação equivocada da doença com determinada orientação sexual é mais um fator que contribui para sobrecarregar o estado emocional dos pacientes, avalia o psiquiatra Adilon Harley Machado, do Espaço Arquétipo, em São Paulo.
"A nova varíola, nome cada vez mais aceito, tem baixa transmissão e baixa virulência, com poucos casos graves. Entretanto, sua morbidade se dá na saúde mental devido ao estigma e à possibilidade de cicatrizes inestéticas das lesões de pele. Além disso, há o afastamento do trabalho, o conhecimento do diagnóstico por pessoas próximas e associações problemáticas entre a doença e orientação e/ou comportamento sexual dos infectados. Todos esses fatores podem agravar quadros de depressão e de ansiedade, ou mesmo servir de gatilho."
O infectologista Ralcyon Teixeira, diretor da Divisão Médica do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, hospital que na última semana atendeu metade de todos os casos suspeitos de varíola do macaco na cidade de São Paulo, revela que os pacientes já ficam apreensivos no pronto-socorro.
"No atendimento em si, às vezes, tem muita angústia para saber se é ou não é. Existe uma ânsia pelo resultado. Hoje, quem ficou responsável pelo resultado [por informar ao paciente] – e até para retomar o atestado e ver como a pessoa está – são as Unidades Básicas de Saúde. Às vezes, tem paciente que acaba voltando aqui, ligando..."
No estado de São Paulo, o Instituto Adolfo Lutz processa todos os exames realizados na rede pública. O resultado sai entre dois e três dias.
Na maioria dos pacientes, as lesões começam a desaparecer a partir do 15º dia, mas podem durar até quatro semanas. Durante todo o período, a pessoa precisa permanecer isolada, pois até mesmo as crostas são cheias de vírus.
Teixeira afirma que há pacientes que precisam ficar ainda mais tempo em casa.
"Tem alguns casos que estão tendo lesões prolongadas ou que reativam as lesões depois. Tem gente que está há quase 40 dias com lesão."
Isolamento se tornou uma palavra incômoda para muitas pessoas nos últimos anos.
"A Covid-19 impôs restrições sociais que já fazem parte do passado para muitos de nós, mas ainda vivemos 'um momento de recuperação' dos impactos da pandemia", diz o psicólogo Felipe Blanco Nunes, especialista em psicossomática e subinvestigador do Centro de Pesquisa do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.
"Foi a partir desse fenômeno, que nos afetou em 2020, que nós conseguimos ver – principalmente nas questões de isolamento social – que as mazelas psicológicas e emocionais estão muito ligadas e são muito afetadas dentro desse processo de isolamento. Sabemos que o isolamento de monkeypox é mais amplo [que o de Covid-19]."
Diante da necessidade de trabalhar e sem lesões aparentes, é possível que muitas pessoas queiram manter a rotina normal, o que é um risco, alerta a virologista Clarissa Damaso, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e membro do Comitê de Emergência Monkeypox da OMS.
"O problema todo, eu acho, é que muita gente que se não tiver como ficar afastada do trabalho, por exemplo, um autônomo, vai voltar a trabalhar. Aí está o perigo, porque você pode transmitir para outras pessoas. [...] Lá fora, alguns países estão vendo que uma das coisas pelas quais as pessoas não querem testar é porque não querem se afastar."
Ralcyon Teixeira conta que esse convencimento sobre necessidade do isolamento é um desafio dos profissionais de saúde e cita um caso relatado por um colega médico.
"Tinha um paciente, um personal trainer... O médico ligou para ele para saber como ele estava, abriu a câmera, e ele estava na academia dando aula, disse que tinha que trabalhar. Com muito custo, o médico conseguiu convencê-lo a ficar recluso, falou para ele que, se algum aluno pegasse [a doença] dele, seria muito pior."
O Instituto de Infectologia Emílio Ribas recebeu desde junho aproximadamente 700 casos suspeitos, dos quais cerca de 600 tiveram resultado positivo para o vírus monkeypox.
Nas últimas semanas começaram a aparecer mais casos fora do grupo HSH, com infecções associadas ao ambiente doméstico, destaca Teixeira.
"Os contatos domiciliares estão aumentando um pouco agora. Tem algumas transmissões dentro de hospital – são oito casos no estado. Em um deles, a técnica de enfermagem se furou com um bisturi que tinha sido usado para coletar o exame. Tem grávidas, tem crianças e agora tem mais mulheres [infectadas]. Está se espalhando, não dá para deixar em um nicho. A gente tem que informar."
Desde o início, autoridades sanitárias têm alertado para a necessidade de combater o preconceito e estigma em torno da varíola do macaco, nome que, inclusive, está sendo revisto pela OMS.
Aqui no Brasil, já foram encontrados macacos mortos, sendo que esses animais não têm absolutamente nenhuma relação com o surto. O nome da doença se deu porque foi neles que o vírus foi encontrado pela primeira vez, em 1958. Os reservatórios naturais do patógeno são pequenos roedores.
O fato de o surto ter sido detectado inicialmente em grupos de homens gays e bissexuais remete especialistas a algo já visto no passado: o vírus HIV, que serviu de propulsor de intolerância e preconceito, tudo o que quer se evitar neste momento.
"Qualquer um que apresente práticas de risco, sejam elas sexuais ou até abraçando, beijando, beijando a mão da namorada, a testa do filho... entrando em contato com feridas ativas, isso tudo te coloca à mercê da infecção pelo vírus", enfatiza Nunes.
A criação de ideias erradas em torno da varíola do macaco atrapalha também o enfrentamento da doença, com pessoas que podem deixar de buscar testagem ou atendimento médico, o que, consequentemente, aumenta a disseminação do vírus.
"Garantir a equidade nas abordagens de teste, tratamento e prevenção da varíola do macaco é fundamental, e tomar ações para minimizar o estigma relacionado à varíola do macaco pode reduzir as barreiras à busca de atendimento e prevenção", orientam em comunicado recente os CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos.
A desinformação em momentos de surtos de doença é tão prejudicial quanto o próprio agente infeccioso – isso já foi observado na Covid-19.
Por isso, é essencial que a população tenha conhecimento da doença, dos sintomas e do que fazer em caso de suspeita.
"Não temos política e comunicação claras sobre os riscos e prevenção da nova varíola, o que agrava a epidemia", frisa Adilon Machado.
O Ministério da Saúde chegou a desativar, em 11 julho, a sala de situação que havia criado para monitorar o surto. Um novo comitê só foi montado no dia 29 do mesmo mês, após a morte de um paciente com monkeypox em Belo Horizonte.
A varíola do macaco é uma doença conhecida em humanos desde 1970, mas o surto atual é o maior já visto, com mais de 35 mil casos em 89 países. Entretanto, começou-se a perceber que a infecção se manifesta agora com características diferentes daquelas observadas em países africanos no passado.
Um estudo publicado em julho no The New England Journal of Medicine, com 528 pacientes em 16 países, mostrou que 64% deles tinham menos de dez erupções na pele ou em mucosas.
O padrão diferente de sintomas diz respeito principalmente às lesões na região anogenital, que estavam presentes em 73% dos infectados, o que aumenta a possibilidade de erro no diagnóstico por serem, ocasionalmente, confundidas com alguma IST (infecção sexualmente transmissível).
Úlceras nas mucosas apareceram em 41%, e um em cada dez pacientes tinha uma única lesão genital no momento do diagnóstico.
Outros dois sintomas que costumam aparecer antes do surgimento das lesões, a febre e o inchaço de linfonodos (linfadenopatia) não foram relatados em 50% e 60% dos pacientes, respectivamente, no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, segundo o diretor da Divisão Médica.
"Tem gente que só tem mais a lesão mesmo. Pode passar despercebido. Tem caso, provavelmente, que está passando despercebido", afirma o médico.
É inevitável a comparação da monkeypox com a Covid-19, mas elas têm diferenças significativas, sendo a segunda muito mais transmissível. A varíola do macaco depende de contato próximo, e não há evidências de que se dissemine pelo ar, por exemplo.
Mesmo assim, "é necessário estar vigilante", observa Teixeira.
"Primeiro, que as pessoas entendam que é uma nova doença, que as lesões não são aquelas que a gente ficou pensando que fossem. Na dúvida, é melhor procurar o médico para ver e, dependendo do que for, até coletar [amostra da lesão] para fazer o exame. Hoje, temos um aumento do número de coletas com casos negativos, ou seja, as pessoas estão fazendo um pouco mais de hipóteses e que estão sendo excluídas."
Na cidade de São Paulo, o local mais afetado do país pelo surto de monkeypox, a prefeitura garante que as UBSs (Unidades Básicas de Saúde) estão preparadas para atender os pacientes com suspeita da doença.
Alguns laboratórios da rede privada já estão fazendo exames, mas ainda não há cobertura de planos de saúde. Os preços giram em torno de R$ 500, e é necessário apresentar pedido médico.
Cabe ressaltar que até o momento o Brasil não tem disponíveis antivirais e vacinas para a varíola do macaco. O Ministério da Saúde anunciou a compra de imunizantes e medicamentos, por meio da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), mas ainda sem previsão de uma data clara de quando estarão nos serviços de saúde.