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porto velho, sexta-feira 27 de junho de 2025
Juliana Marins, de 26 anos, era uma brasileira de Niterói que estava fazendo um mochilão pela Ásia. Durante uma trilha no Monte Rinjani, um vulcão na ilha de Lombok, na Indonésia, ela se separou do grupo e caiu em um penhasco de cerca de 500 metros. Ela ficou desaparecida por quatro dias até ser localizada por drones com sensores térmicos. Infelizmente, quando foi encontrada, já estava sem vida.
Entre uma imensa polêmica quanto a possível negligência dos indonésios e surtos de julgamentos de culpa na internet, o resgate, liderado por dois montanhistas — Agam Rinjani e Tyo Survival — despertou uma onda de comoção no Brasil e criou uma tensão contemporânea: onde termina o altruísmo e começa a performance pública?
Voluntariado ou visibilidade?
Há muitos indícios de que a ação de Agam e Tyo foi movida por empatia e senso de dever. Ambos são guias experientes no Monte Rinjani e já participaram de outros resgates. Ele afirmou que fazia aquilo “de coração” e que era “o trabalho dele”. Além disso, os relatos sobre o frio extremo, o risco de morte e a exaustão física reforçam a ideia de que não foi uma ação confortável ou pensada para autopromoção.
Por outro lado, é inegável que Agam ganhou centenas de milhares de seguidores após o resgate. Ele compartilhou vídeos e fotos do local, e fez transmissões ao vivo com tradutores para se comunicar com o público brasileiro. Isso gerou comentários de que ele estaria se beneficiando da tragédia. No entanto, até o momento, não há indícios de que ele tenha explorado comercialmente essa visibilidade — e muitos dos elogios que recebeu vieram espontaneamente de internautas comovidos com sua atitude.
Sim, há quem questione a exposição nas redes, especialmente em tempos em que o “heroísmo” pode ser capitalizado. Mas a maioria das manifestações, tanto da imprensa quanto do público, tem sido de gratidão e reconhecimento. Inclusive, muitos destacaram que o verdadeiro problema não foi a visibilidade dos voluntários, mas a ausência de um sistema de resgate eficiente no Monte Rinjani.
Comoção digital e “heroísmo instantâneo”.
Logo após o resgate, Agam foi alçado ao status de “herói nacional” por milhares de brasileiros. Em poucas horas, seu perfil no Instagram saltou para mais de 800 mil seguidores. Comentários como “Você é um anjo” e “Deveria receber uma medalha do governo brasileiro” inundaram suas postagens. A comoção foi tamanha que internautas organizaram campanhas de arrecadação para ajudá-lo financeiramente.
Essa resposta emocional coletiva mostra como as redes sociais funcionam como amplificadores de narrativas heroicas, especialmente quando envolvem coragem, sacrifício e empatia. A imagem de Agam segurando o corpo de Juliana à beira do penhasco virou um símbolo poderoso — e, para muitos, incontestável.
Apesar da admiração, algumas pessoas questionaram o uso de lives e vídeos durante o resgate, que chegaram a reunir 300 mil espectadores simultâneos. Para esses críticos, a exposição poderia indicar uma tentativa de autopromoção. No entanto, até agora, não há indícios de exploração comercial dessa visibilidade.
Esse caso revela uma tensão contemporânea: o desejo de reconhecer atos de bondade versus o ceticismo diante da exposição digital. Vivemos em uma era em que até gestos altruístas são filtrados pela lente da performance pública. Mas talvez a pergunta mais importante não seja “por que ele compartilhou?”, e sim: “o que nós buscamos ao assistir?”
E o “Efeito Lúcifer”?
A obra O Efeito Lúcifer (2007, tradução no Brasil em 2012), do psicólogo Philip Zimbardo, nos oferece uma lente poderosa para analisar o comportamento humano em situações extremas — e ela se encaixa de forma surpreendente no caso do resgate de Juliana Marins. Zimbardo propõe que pessoas boas podem cometer atos ruins quando inseridas em contextos que favorecem a desumanização, a obediência cega ou a pressão social. Ele baseia sua tese no famoso Experimento da Prisão de Stanford, onde voluntários comuns, ao assumirem papéis de guardas, passaram a agir com crueldade em poucos dias.
No caso do resgate, o que vemos é o oposto do Efeito Lúcifer: indivíduos que, diante de uma situação extrema, optaram por agir com coragem e empatia, mesmo sem obrigação formal. Mas a análise fica mais rica quando olhamos para o ambiente digital que se formou em torno deles.
Zimbardo argumenta que o comportamento humano muda quando estamos sob vigilância ou expectativa social. A transmissão ao vivo do resgate e a explosão de seguidores podem ter criado um ambiente onde a performance pública se mistura com a ação altruísta. Isso não invalida a boa intenção, mas levanta a pergunta: até que ponto o comportamento foi moldado pela presença de uma “plateia”?
Enquanto o Efeito Lúcifer mostra como vítimas podem ser desumanizadas, aqui vemos o contrário: Agam foi quase “santificado”. Isso pode ser perigoso, pois transforma uma pessoa real em símbolo, o que pode gerar expectativas irreais ou até manipulação emocional — tanto por parte do público quanto da mídia.
Zimbardo enfatiza que o mal muitas vezes emerge de sistemas falhos, não de indivíduos maus. No caso de Juliana, a ausência de um sistema de resgate eficiente forçou voluntários a assumirem riscos extremos. Isso reforça a ideia de que o heroísmo individual muitas vezes nasce da negligência institucional.
No fim, o caso de Agam e Tyo não é um exemplo do Efeito Lúcifer em ação, mas sim um espelho que nos permite refletir sobre os limites entre o bem e o mal, o altruísmo e a autopromoção, o indivíduo e o sistema — exatamente como Zimbardo nos convida a fazer.
A linha tênue entre o “bem e o mal” traçada por Agam e Tyo.
A linha entre o bem e o mal é permeável, e quase qualquer pessoa pode ser induzida a cruzá-la quando pressionada por forças situacionais.” (Philip Zimbardo, O Efeito Lúcifer). Esse trecho nos ajuda a entender que o comportamento humano é altamente influenciado pelo contexto. No caso de Agam, o ambiente extremo — físico e emocional — poderia ter gerado apatia ou omissão. Mas ele escolheu agir com empatia, o que torna sua decisão ainda mais significativa.
Zimbardo argumenta que as situações moldam o comportamento mais do que os traços de personalidade. Isso nos leva a refletir: será que, se outro guia estivesse no lugar de Agam, teria feito o mesmo? Ou foi o contexto — a ausência de resgate oficial, o apelo público, a presença de câmeras — que o impulsionou?
“O heroísmo é o desvio positivo da norma, é a recusa em ser passivo diante da injustiça ou da dor alheia.” (Zimbardo, em entrevistas sobre o livro). Esse conceito é essencial para analisar Agam e Tyo. Eles não eram obrigados a agir. Não havia recompensa garantida. Ainda assim, enfrentaram riscos extremos para resgatar uma desconhecida. Isso se encaixa na definição de heroísmo que Zimbardo propõe: agir com coragem moral mesmo quando ninguém está olhando — ou quando todos estão.
É possível que o resgate tenha sido moldado, em parte, pelo ambiente hipervisível em que vivemos — mas a responsabilidade por isso é compartilhada. O público consome histórias de dor, coragem e superação com avidez, transformando vidas reais em narrativas simbólicas. Nesse sentido, Agam e Tyo foi ao mesmo tempo sujeito e objeto de uma dramaturgia social em tempo real. Talvez a pergunta mais honesta não seja “ele quis aparecer?”, mas sim: “por que precisamos que alguém apareça para nos sentirmos tocados?”
Contexto: Espetáculo ou espelho social?
Quando eu descrevo a atitude de Agam e Tyo como “espontânea” ou “altruísta”, estou me baseando nos relatos disponíveis, nas declarações públicas deles e na forma como os eventos foram narrados pela mídia e testemunhas. Mas isso não significa que haja certeza sobre a motivação de ninguém. Pelo contrário — a psicologia social e a filosofia moral nos ensinam que as intenções humanas são sempre multifatoriais e frequentemente ambíguas.
Por que minha análise tende a considerar a espontaneidade? Primeiro: Até agora, não há indícios de que eles tenham planejado o resgate com objetivo de autopromoção. As ações relatadas envolvem alto risco pessoal, esforço físico extremo e, aparentemente, ausência de benefício direto e imediato. Em segundo plano: Agam inicialmente rejeitou doações e resistiu a divulgar dados bancários — isso tem sido interpretado como um sinal de autenticidade. Claro, essa interpretação não é definitiva. Por fim: A narrativa dominante foi construída com base em fontes que favoreceram a ideia de heroísmo. E como bem sabemos, narrativas moldam percepções — e, portanto, posso ter refletido essa tendência na análise.
Mas pense comigo, tendo como referência um ponto-chave de Zimbardo: contextos moldam comportamentos tanto quanto (ou mais do que) intenções individuais. Não dá para excluir a possibilidade de que o “olhar do outro” — o público, a câmera, a internet — tenha influenciado, mesmo que inconscientemente, as atitudes dos voluntários. Isso não desmerece o que foi feito, mas nos convida a pensar com mais nuance.
Talvez uma outra pergunta – também - honesta não seja “foi altruísmo puro ou busca por atenção?”, mas sim: o quanto cada elemento — compaixão, senso de dever, adrenalina, visibilidade — contribuiu nesse mosaico humano tão complexo que é agir sob pressão?
O caso de Agam e Tyo escancara zonas cinzentas da ética contemporânea. O heroísmo pode ser real — e, ao mesmo tempo, amplificado por uma audiência faminta por narrativas de coragem. A exposição nas redes não elimina a legitimidade da ação, mas nos obriga a reconhecer: vivemos tempos em que nenhum gesto está isento de ser mediado, compartilhado e interpretado publicamente.
A provocação aqui talvez não seja por definir se houve autopromoção ou não, mas compreender o tipo de sociedade que estamos construindo: uma que precisa testemunhar o heroísmo para acreditar na humanidade. Neste espelho social, Agam e Tyo não apenas atuaram com coragem — eles encarnaram as tensões entre empatia e exposição, presença e performance, realidade e narrativa. Entre uma sociedade que reconhece os atos de coragem, mas também os transforma em mercadoria emocional.
Saiba Mais? Algumas referências.
Notícia: Quem são Agam e Tyo.
https://www.terra.com.br/notic...,a01abbfc6a309a6472c9d8552a8d99428c3sck7r.html
Livro: O Efeito Lúcifer
https://www.bookey.app/pt/book...
Entrevista completa de Philip Zimbardo by DPU.
Notícia: Dificuldades do Resgate.
https://g1.globo.com/rj/rio-de...
Noticia: Live dos socorristas do resgate: Agam e Tyo.