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porto velho, sábado 12 de julho de 2025
A cultura dos memes, antes símbolo de leveza e criatividade, tem se tornado palco de esteticofobia e reforço de padrões excludentes. O humor virou arma — e o alvo, quase sempre, tem nome, corpo e rosto. Eles surgem como piadas, se espalham como vírus e se instalam como verdades. Os memes, hoje, não são apenas entretenimento: são ferramentas de narrativa, julgamento e exclusão. Em tempos de hiperexposição, rir virou ato político — e o corpo humano e animal, especialmente o feminino, virou campo de batalha. A estética, antes expressão de identidade, agora é medida de valor. Mas quem define o que é “bonito”? E por que rir do outro e dos seres vivos, virou tão aceitável? Pior: que animal é este?
A munição contra a autoestima e esteticofobia.
Memes que zombam de corpos, rostos e estilos reforçam preconceitos sutis e normalizam a violência simbólica. Segundo o Museu de Memes da UFF, o Brasil tem uma das culturas mais sofisticadas de memes, mas também uma das mais cruéis quando se trata de aparência. A estética virou alvo fácil: basta um print, uma montagem, um filtro — e o julgamento viraliza.
A psicóloga Laura Pertence alerta: “A estrutura física está associada ao sistema de consumo, e a mídia atua reforçando as maneiras de atingir tal padrão. Os haters aproveitam qualquer oportunidade para atacar o ego desses usuários”.
Um estudo da consultoria Dubu revelou que 79% das brasileiras sentem discriminação por aparência física. Mulheres da Geração Y evitam se expor publicamente com mais frequência (40%) do que as da Geração Z (30%).
A empresária Marina Machado, do ramo da estética, foi vítima de ataques gordofóbicos após divulgar um curso online. “Chegaram comentários como: ‘Dona de clínica de estética gorda? Nunca vi uma coisa dessas’. O Facebook chegou a bloquear minha conta por quatro dias”.
Outra profissional relatou: “Sou plus size e estou na estética há 11 anos. Infelizmente, as pessoas julgam meu corpo, esquecem-se da minha capacidade profissional. Meu conhecimento está no meu cérebro, não no corpo que idealizaram para mim”.
A crueldade com inocentes.
A atendente Evelyn Orozimbo viu a imagem da filha recém-nascida viralizar como meme ofensivo. “Xingaram a aparência dela, desejaram coisas horríveis e li comentários do tipo: ‘se fosse meu filho, eu matava’”. Evelyn denunciou o caso à polícia, mas nada foi feito. A imagem da criança foi usada em vídeos de “pegadinhas” e figurinhas de WhatsApp como exemplo de “bebê feio”.
A advogada Iolanda Garay, da Associação Nacional das Vítimas de Internet, afirma: “Se fosse uma bebê loirinha de olhos azuis, você acha que isso estaria acontecendo? A maioria das crianças expostas nesse tipo de publicação têm traços de origem preta”.
A superexposição infantil, muitas vezes feita pelos próprios pais, pode se transformar em gatilho de humilhação pública. E o meme, nesse caso, não é só piada — é violência simbólica contra quem sequer tem voz.
Neste âmbito, em outro polo, estão os animais e seus “memes fofos”. Macacos vestidos como humanos, tomando suco de canudinho ou andando com mochilas são vistos como engraçados. Mas por trás dessas imagens há maus-tratos, privação materna e sofrimento psicológico. Segundo relatório da Coalizão de Crueldade Animal nas Redes Sociais, os animais são retirados de suas mães ainda bebês e treinados com violência para parecerem “engraçados”.
O biólogo Wesley Batista alerta: “As expressões ‘fofas’ são, na verdade, sinais de sofrimento. A internet e a cultura popular contribuem para a proliferação desses memes, que escondem tortura e exploração”. A nossa inocência e entender que não podemos nem nos divertir com essa criatividade, por causa desse chavão “politicamente correto” na verdade é o sucesso dos memes frente a “imbecilização” voluntária dos códigos de comunicação humanos. O memes conseguem isso: imbecilizar. Não é comunicar, nem divertir.
A violência emocional do meme.
A estética virou campo de guerra, e os memes, suas balas. Rir do outro virou hábito, e o corpo virou alvo. Crianças viraram piada antes mesmo de aprenderem a falar. Animais são humanizados em vídeos que escondem maus-tratos. Gente simples, “feia”, “desdentada”, sem “consciência de si” e em situação vexatórias, também. E adultos que ainda se sentem ilesos, seguem se moldando para não virarem “print”.
Há quem ache que “não há nada de mais” e que tudo é mero exagero. Este já está consumido por sua própria ignorância (voluntária?). Mas há quem resista. Há quem ria de volta — não por deboche, mas por sobrevivência. Há quem transforme o meme em manifesto, o corpo em bandeira, e a exposição em escudo.
A verdade é que os memes não vão parar. Eles são parte da linguagem digital, da cultura pop, da política e da publicidade. Fingir que eles não existem ou tentar “cancelar” o humor é inútil. O que precisamos é reconhecer o poder que eles têm — e usá-lo com mais consciência, menos crueldade e, quem sabe, com um pouco mais de inteligência.
Porque no fim das contas, rir ainda é humano. Mas rir de tudo pode ser desumano.
E talvez seja hora de perguntar: quem está rindo, e por quê?
Saiba Mais? Algumas referências.
TCC UNIBRA. José Fay Neto. “Memes e a Psicologia da Comunicação na Era Digital” – TCC II, curso de bacharelado em Psicologia. [Catarina Burle Viana, Orientadora]. https://www.grupounibra.com/re...;
Museu de Memes da UFF. https://museudememes.com.br/
Notícia: Memes “fofos” e maus tratos (macacos). https://g1.globo.com/meio-ambi...
Noticia: Influenciadores e as críticas ao corpo. https://www.metropoles.com/vid...
Relato de Marina Machado (Noticia): https://www.em.com.br/app/noti...,1393979/profissionais-da-beleza-fora-do-padrao-estetico-relatam-preconceito.shtml
Tribunal da Internet e cultura do cancelamento: https://www.otempo.com.br/interessa/comentarios-nas-redes-sociais-podem-impactar-a-vida-das-pessoas-1.3326008
Estudo “Sem Cabimento”, conduzido pela consultoria de estratégia Dubu. https://mundodomarketing.com.br/pressao-estetica-79-das-brasileiras-sentem-discriminacao-por-aparencia
Caso Evelyn Orozimbo. https://www.amodireito.com.br/2023/11/fui-policia-parem-usar-foto-minha-filha-meme.html
Relatório da Coalizão de Crueldade Animal nas Redes Sociais (2021-2023). https://www.worldanimalprotect...