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    porto velho, domingo 24 de novembro de 2024

Casal homoafetivo e mulher trans vencem barreira jurídica para adotar crianças no PA

Bárbara é transexual e se tornou mãe de Pietro após uma longa espera. Foram 14 anos e algumas negativas, inclusive do Poder Judiciário.


G1

Publicada em: 12/01/2018 15:10:07 - Atualizado

Com o amparo da Justiça, se tornou cada vez mais comum a formação de famílias que contrapõem o modelo tradicional composto por pai e mãe interessadas em adotar crianças. Esse cenário foi impulsionado após a resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que garante a oficialização de uniões entre pessoas do mesmo sexo. No Pará, além do casamento, vem crescendo o número de pedidos de adoção por parte deste grupo. Somente em 2017, foram seis pedidos junto à 1ª Vara da Infância e Juventude, o dobro do ano anterior.

Segundo o magistrado João Augusto Figueiredo de Oliveira Jr, não há critérios para uma pessoa se habilitar a adotar uma criança ou adolescente. “Qualquer pessoa pode adotar, exceto as linhas ascendentes avô e avó e pessoas com diferença de idade inferior a 16 anos”, explica. “Não tem problema se é uma pessoa solteira ou se é um casal heteroafetivo ou homoafetivo. Qualquer tipo de família pode acolher uma criança”, esclarece.

Destinos Cruzados é uma série de reportagens do G1 que vai mostrar o cenário da adoção no Pará, as expectativas de futuros pais, a realidade das crianças dos abrigos e histórias de vidas que se uniram no processo adotivo.

Primeira reportagem da série mostra que a maior parte das crianças que aguarda por adoção está fora do perfil procurado por futuros pais.

Segunda reportagem fala da realidade das crianças que vivem em abrigos vítimas de maus-tratos, abandono e violência sexual.

Mulher trans, solteira e mãe

Mas nem tudo é assim tão simples. Bárbara Pastana, mulher trans, conta que estava há mais de dez anos aguardando pela oportunidade de adotar uma criança. Uma longa espera no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e uma série de argumentos institucionais a impediam de realizar este sonho, o que acabou mudando com o passar do tempo, resultado de algumas decisões da Justiça Brasileira. Uma delas foi o voto do relator do STJ, ministro Luis Felipe Salomão, ao levar em consideração o desejo de uma criança que queria ser adotada por um casal homosexual.

“Comecei essa busca no começo dos anos 2000, quando me cadastrei para adotar. O juiz tirou logo minhas esperanças e disse que por eu ser solteira, não conseguiria adotar. Depois, o motivo era eu não ter renda fixa comprovada. Me tornei assessora parlamentar e mesmo assim não conseguia. Então percebi que o problema era o fato de eu não estar nos padrões do que se espera de uma mãe: sou mulher trans e solteira”, conta.

Já em 2014, o destino trouxe até Bárbara um bebê recém-nascido. A mãe biológica não poderia ficar com ele e optou por entregá-lo à servidora, que logo procurou a Justiça para oficializar a adoção do pequeno Pietro, hoje com 4 anos. “Foi uma adoção espontânea. O advogado solicitou a guarda para mim e a mãe biológica concordou. O juiz estabeleceu que a mãe teria um ano para decidir se queria voltar atrás da decisão ou não”, explica.

Na época da adoção, Bárbara não tinha documentos com o nome social feminino, e precisou registrar seu filho como sendo seu pai adotivo – o que foi alterado tempos depois. “Só assim consegui meu filho tão desejado, senão ficaria um tempo indeterminado esperando para realizar o sonho de ser mãe do Gabriel”.

Para Bárbara, na última década, muitos avanços na equidade de direitos entre hétero e homossexuais ocorreram, mas o preconceito ainda dificulta a vida das pessoas LGBTs. “Enfrento preconceito na rua, no ônibus, mas no convívio escolar, familiar, eu sei como conduzir”, garante Bárbara, militante dos direitos humanos, que se dedica a combater o preconceito e garantir uma vida tranquila a seu filho. “Hoje na escola é super bacana. Desenvolvo um trabalho de palestra para conscientizar as pessoas sobre a diversidade. As professoras viraram parceiras”, alegra-se.

“Eu acredito que precisamos reconstruir esse modelo de sociedade que tem certos padrões como corretos sem considerar a diversidade”, defende Bárbara, que integra o Fórum de Pessoas Trans do Pará e, também, é coordenadora de políticas para pessoas trans do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT) do Pará.

Pelo direito à família

O casal João Carlos Fonseca Martins e Jorge Antônio Nascimento Souza, que mora no bairro do Marco, em Belém, ficou três anos na lista de espera, a contar desde o dia em que deram entrada no processo de adoção na Infância e Juventude do Poder Judiciário. Mas a espera valeu a pena, o pequeno Gabriel, que hoje tem um ano e quatro meses, chegou na vida deles e mudou tudo para melhor, garantem os pais.

“Fomos o primeiro casal homoafetivo a oficializar a união civil em Belém. O Supremo (Tribunal Federal) aprovou num dia e no dia seguinte nós estávamos na porta do cartório para casar. Nós também fomos o primeiro casal homoafetivo a adotar uma criança no abrigo Euclides Coelho. Temos um nova vida, muito melhor...”, conta João.

João Carlos é servidor público e Jorge Antônio é professor de Educação Física. Eles vivem juntos há 20 anos e são casados desde 2013, quando saiu a súmula do STF reconhecendo casamentos civis de casais do mesmo sexo. Foram eles, inclusive, o primeiro casal homoafetivo que oficializou a união civil em Belém. O desejo da paternidade surgiu pouco tempo depois do matrimônio de forma espontânea e junto com o amadurecimento da relação, relembra João.

“O desejo inicial foi meu e, aos poucos, o Jorge começou a abraçar a ideia. Nós procuramos, então, a Vara da Infância e da Juventude para nos informar sobre o procedimento que deveríamos adotar para dar esse passo”, explica. Ansiosos, os papais fizeram a habilitação para adentrar no processo e o tradicional curso preparatório proposto pelo Judiciário. Na antevéspera do Círio de Nazaré de 2016 eles receberam uma ligação. “A caminho do telefone eu senti que aquela ligação era uma notícia sobre o meu filho”, relata João.

“Quando eu olhei o Gabriel eu disse imediatamente: é meu filho”, conta João.

João e Jorge finalmente conseguiram a guarda provisória do Gabriel. A criança, na época com dois meses de idade, saiu do abrigo com coqueluche, doença infectocontagiosa caracterizada por fortes ataques de tosses. Além deste susto, logo os pais de primeira viagem tiveram outro: entregar o neném dois dias depois por conta de uma orientação jurídica, que só foi resolvida após a intervenção de uma advogada.

"Não entendemos muito bem a confusão jurídica, mas, no mesmo dia, a nossa advogada foi ao Ministério Público do Pará (MPPA) intervir e então o juiz concedeu a liminar de liberação do Gabriel. Mas ter que devolver o Gabriel doente ao abrigo foi terrível. Foi um sentimento de perda, porque nosso amor por ele foi à primeira vista. Não tem diferença de ser um filho adotado ou biológico”, avalia.

Gabriel era filho de dois jovens que resolveram entregá-lo voluntariamente à Justiça. A família extensiva (pai e mãe dos jovens) foi chamada e também abriu mão da guarda da criança. O juiz realizou, então, a destituição do poder familiar. “Recordo que foi angustiante para nós na época, pois os pais biológicos foram chamados para se manifestar e ficamos com medo de que eles desistissem de entregar o Gabriel ou que algum tipo de imparcialidade interferisse para que a criança não ficasse conosco por sermos um casal homoafetivo”, diz João.

Os direitos sociais

Gabriel foi registrado como dependente do casal em todos os benefícios sociais, entre eles, plano de saúde, da mesma forma que é realizada com um casal heteroafetivo. “Sou uma pessoa muito feliz por estar vivendo esse momento com o meu filho”, avalia Jorge. Ele diz que não consegue entender como o direito de adotar foi negado durante tantos anos aos homossexuais. “Também nunca passou pela minha cabeça ser pioneiro nisso, haja vista que a adoção por casais homoafetivos é, de certa forma, uma coisa nova no país”, avalia.

O casal já pensa em adotar mais um filho. “Uma criança é sempre um presente. Hoje, arrependimento eu só tenho de não ter adotado antes. O Gabriel chegou e compartilhamos de tudo da nossa vida com ele. Nossas viagens, nosso lazer… Inclusive eu trabalho perto de casa e faço questão de vir almoçar todos os dias com o meu filho, para compensar, de alguma forma, os momentos de ausência”, diz João.

O servidor público também planeja contar a verdade sobre a história de vida e a forma como o pequenino chegou até eles. “Ele vai saber que foi adotado por nós e também vai ser preparado para enfrentar os preconceitos que vai sofrer por ser filho de dois homens. Isso tudo dentro do tempo certo”, conclui o pai.



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