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porto velho, domingo 24 de novembro de 2024
BRASIL: As relações de emprego — mesmo em seu âmbito coletivo — não podem ultrapassar o limite do razoável, já que a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho são bens de primeira grandeza de qualquer sistema jurídico democrático. E a liberdade de empreender e buscar lucros encontra limites no artigo 170, III, da Constituição Federal, que estabelece a função social da empresa.
Esse foi o entendimento do juiz Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, para condenar a Uber a pagar indenização de R$ 1 bilhão por danos morais coletivos e registrar os motoristas que atuam por meio da plataforma.
A decisão foi provocada por ação civil pública do Ministério Público do Trabalho que pediu o reconhecimento do vínculo de emprego entre a Uber e os motoristas, alegando que a empresa provocou dano moral coletivo. O MPT também solicitou que a decisão tenha alcance nacional e que a Uber se abstenha de contratar motoristas a partir de relações contratuais diversas do emprego.
Em sua defesa, a empresa alegou que as provas produzidas pelo MPT são imprestáveis, negou a existência de vínculo de emprego e sustentou que os pedidos formulados na ação violam a livre concorrência, além de contestar a existência de dano moral coletivo.
Ao analisar o caso, o magistrado reconheceu o vínculo de emprego entre motoristas e empresa. Segundo ele, o caminho da interpretação de uma norma deve partir da Constituição, de modo que, como o texto constitucional prestigia o valor social do trabalho, a realidade dos motoristas da plataforma não pode ser encarada como algo imutável em razão das circunstâncias econômicas.
"Condeno a Ré à obrigação de fazer, qual seja, observar a legislação aplicável aos contratos firmados com seus motoristas, devendo efetivar os registros em CTPS digital na condição de empregados, de todos os motoristas ativos, bem como daqueles que vierem a ser contratados a partir da decisão, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 para cada motorista não registrado."
Assim, para cumprir a decisão, a empresa terá de registrar centenas de milhares de motoristas que atuam na plataforma. O magistrado também deu razão ao MPT em relação à existência de dano moral coletivo decorrentes do modelo de negócio e da atuação da empresa.
"Evidenciou-se a ocorrência das ofensas perpetradas pela Ré contra toda a sociedade civil, no âmbito das relações de trabalho, mas também com claros reflexos na condição concorrencial, de segurança pública, segurança no trânsito, da assistência social. Como é cediço, as condutas abusivas suso mencionadas caracterizam o dano moral coletivo, que atenta contra a dignidade psíquica da população, de forma repetitiva e prolongada, e que expõe a classe trabalhadora a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tenha por efeito excluir a posição da parte trabalhadora no emprego ou deteriorar o ambiente de trabalho durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções", registrou ele ao estipular a multa de R$ 1 bilhão contra a empresa.
De acordo com a decisão, o valor da multa será destinado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (90%) e às associações de motoristas (10%) que tenham registro em cartório.
Outro lado
Por meio de nota, a Uber do Brasil se manifestou sobre a decisão. A empresa afirmou que vai recorrer e que não vai adotar nenhuma das medidas elencadas pelo juiz da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo.
Leia a nota na íntegra:
"A Uber esclarece que vai recorrer da decisão proferida pela 4ª Vara do Trabalho de São Paulo e não vai adotar nenhuma das medidas elencadas na sentença antes que todos os recursos cabíveis sejam esgotados.
Há evidente insegurança jurídica, visto que apenas no caso envolvendo a Uber, a decisão tenha sido oposta ao que ocorreu em todos os julgamentos proferidos nas ações de mesmo teor propostas pelo Ministério Público do Trabalho contra plataformas, como nos casos envolvendo Ifood, 99, Loggi e Lalamove, por exemplo.
A decisão representa um entendimento isolado e contrário à jurisprudência que vem sendo estabelecida pela segunda instância do próprio Tribunal Regional de São Paulo em julgamentos realizados desde 2017, além de outros Tribunais Regionais e o Tribunal Superior do Trabalho.
A Uber tem convicção de que a sentença não considerou adequadamente o robusto conjunto de provas produzido no processo e tenha se baseado, especialmente, em posições doutrinárias já superadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.
Na sentença, o próprio magistrado menciona não haver atualmente legislação no país regulamentando o novo modelo de trabalho intermediado por plataformas. É justamente para tratar dessa lacuna legislativa que o governo federal editou o Decreto Nº 11.513, instituindo um Grupo de Trabalho 'com a finalidade de elaborar proposta de regulamentação das atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas', incluindo definições sobre a natureza jurídica da atividade e critérios mínimos de ganhos financeiros".