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porto velho, domingo 24 de novembro de 2024
BRASIL: A ideia da criação de uma regulamentação trabalhista específica para os serviços de aplicativos (como Uber e iFood), atualmente discutida no Ministério do Trabalho e Emprego, não é consenso entre especialistas da área. Enquanto alguns acreditam que um novo regime jurídico garantiria direitos mínimos a esses trabalhadores, outros entendem que a legislação atual já contempla a categoria com os direitos necessários.
A polêmica é sintetizada no posicionamento de Fabíola Marques, sócia do escritório Abud Marques Sociedade de Advogadas e professora da PUC-SP. Para a advogada trabalhista, o ideal seria uma legislação específica, mas ela reconhece que isso geraria o risco da criação de uma classe de trabalhadores de "segunda categoria" — ou seja, sem os direitos garantidos aos demais empregados.
Segundo Fabíola, os benefícios da regulamentação seriam, por exemplo, a inclusão dos trabalhadores de aplicativos no sistema previdenciário, o pagamento de um piso salarial, 13º salário, FGTS, direito a férias etc. Por outro lado, ela lembra que os empregados domésticos ficaram sem muitos direitos trabalhistas por um bom tempo, mesmo com uma regulamentação própria.
Relação à parte
O advogado, professor e procurador regional do Trabalho aposentado Raimundo Simão de Melo entende que é necessário criar uma regulamentação do serviço de aplicativos.
"Se os trabalhadores de aplicativos não são empregados com carteira assinada, ao menos precisam ter assegurados direitos que elevem o patamar civilizatório mínimo, em comparação com o padrão geral imperativo estatal existente em relação aos outros trabalhadores."
Na sua visão, os motoristas e entregadores precisam da proteção social que já é garantida para quem trabalha como microempreendedor individual (MEI) ou por recolhimento como contribuinte individual. "Mas tudo isso requer regulamentação, para que os direitos sejam obrigatórios", ressalta ele.
Assim, "o Estado tem de se preocupar em fazer uma regulamentação que lhes assegure o mínimo de dignidade como trabalhadores e seres humanos". Segundo Melo, é importante que o governo federal estabeleça regras claras e tenha um diálogo com os próprios trabalhadores e as empresas responsáveis pelos aplicativos.
O professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista Ricardo Calcini, sócio do escritório Calcini Advogados, tem opinião semelhante. Embora seja possível enquadrar esses trabalhadores na legislação atual, ele entende que "a dinâmica hoje existente de labor via aplicativo merece uma regulamentação específica, pois foge da lógica da CLT tal como concebida".
Pelas regras atuais, há controvérsia quanto à classificação dos motoristas e entregadores de aplicativos como empregados ou prestadores de serviços autônomos. De acordo com Calcini, "a permanência dessa dualidade, além de perpetuar uma judicialização desnecessária, não coloca um ponto final em termos de segurança jurídica".
A opção da regulamentação também é defendida pelo advogado trabalhista Lívio Enescu. Para ele, seria adequado "um instrumento jurídico específico que pactuasse direitos e deveres de trabalhadores de aplicativos, representantes das plataformas digitais e o governo". O objetivo seria estabelecer "condições que atendam mutuamente" os anseios das partes envolvidas.
Com isso, os trabalhadores de aplicativos seriam enquadrados em uma nova "modalidade intermediária" entre o empregado e o autônomo. Enescu considera necessários a garantia de segurança do trabalho, os benefícios previdenciários, a remuneração mínima e a transparência no uso da plataforma.
Solução mais simples
Por outro lado, a juíza do Trabalho Luciana Paula Conforti, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), diz que a legislação atual já possui mecanismos para regular os serviços por aplicativos com direitos mínimos.
Segundo ela, a relação de trabalho é definida caso a caso. Se estiverem presentes os requisitos da CLT (pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade), o entregador ou motorista é considerado empregado.
No entanto, o vínculo nem sempre ocorre. A juíza lembra de outras possibilidades de enquadramento, como o trabalho avulso (previsto na Constituição, com direitos garantidos) e o intermitente (previsto na CLT desde a reforma trabalhista de 2017).
Ela exemplifica: caso um entregador de aplicativo trabalhe todos os dias de oito a dez horas e esse serviço seja sua fonte exclusiva de renda, há vínculo de emprego. Mas se o entregador for um estudante que busca uma renda extra por apenas três horas diárias aos fins de semana, não há vínculo. Nesse caso, ele pode ser considerado intermitente.
Em qualquer um desses casos, a competência para definir a relação de trabalho é da Justiça do Trabalho, de acordo com a presidente da Anamatra. Ainda que, ao fim, o vínculo de emprego seja afastado, os magistrados trabalhistas podem analisar as outras relações de trabalho amparadas pela legislação.
Luciana vê com preocupação a ideia de uma regulamentação específica. Para ela, isso precarizaria o trabalho, pois criaria "uma figura de trabalhadores que não está amparada nem na Constituição, nem na CLT". Além disso, a lei provavalmente seria "bem desidratada em termos de direitos".
A juíza recorda que, na década de 1990, países europeus discutiram o conceito de parassubordinação — justamente um meio-termo entre o empregado e o autônomo. Mas, aos poucos, a ideia foi sendo abandonada.
José Roberto Dantas Oliva, advogado e juiz do Trabalho aposentado, também não tem dúvidas de que a CLT já resolve muito bem "a questão do trabalho humano intermediado por plataformas". Para ele, não há necessidade de regulamentação específica, basta "interpretar corretamente a já existente".
A lógica é a mesma: se o trabalho for "prestado com pessoalidade, por pessoa física, de forma não eventual, subordinada e onerosa", o entregador ou motorista é considerado empregado.
Oliva também rebate os argumentos usados para afastar o vínculo de emprego das "relações de trabalho plataformizadas" em qualquer situação.
Enquanto alguns alegam que as plataformas apenas dão apoio tecnológico ao trabalhador, sem colocá-lo sob vigilância direta, o advogado ressalta que o artigo 6º da CLT expressamente equipara os "meios telemáticos e informatizados" aos "meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho" — o que contempla os aplicativos.
"A subordinação agora foi elevada de patamar: é algorítmica. As plataformas digitais controlam absolutamente tudo. Sabem de cada movimento do trabalhador, estabelecem o preço a ser cobrado, avaliam o trabalho realizado, enfim, têm exigências superlativas para admiti-lo e mantê-lo prestando-lhe serviços", assinala Oliva.
Outro argumento comum é o de que o entregador ou motorista pode trabalhar para mais de uma plataforma e até por conta própria ao mesmo tempo. Mas Oliva destaca que a "exclusividade na prestação de serviços não é requisito para reconhecimento de vínculo empregatício" — e já não era antes dos aplicativos.
Ele também diz que a possibilidade de o trabalho ser intermitente "nunca afastou o requisito da não eventualidade". Ou seja, se o trabalho é intermitente, mas não eventual, há vínculo de emprego.
O advogado defende a criação de um Código do Trabalho que contemple tanto o vínculo de emprego quanto as relações de trabalho individiuais, de natureza civil. O objetivo não seria regulamentar o serviço por aplicativos, mas acabar com eventuais discussões sobre a competência da Justiça do Trabalho para resolver casos envolvendo qualquer tipo de relação de trabalho.
À mercê do Judiciário
Atualmente, sem uma legislação específica, a Justiça do Trabalho pode considerar que o trabalhador de aplicativo é empregado, caso preencha os requisitos exigidos pela CLT, ou não, caso entenda que a atividade é autônoma ou intermitente.
Essa linha muitas vezes é vista como tênue, pois o aplicativo pode aplicar penalidades, mas o trabalhador também pode ter certa liberdade quanto à jornada de trabalho.