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porto velho, domingo 24 de novembro de 2024
BRASIL: Embora a Lei 14.532/2023 tenha sido produzida com o objetivo de reprimir com maior rigor a injúria racial, existe o risco de que essa novidade legislativa acabe beneficiando os réus, especialmente em episódios ocorridos nas redes sociais.
Estudo da Faculdade Baiana de Direito, elaborado em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o portal Jusbrasil, destaca que, de acordo com a nova norma, a pena mínima para a injúria racial em comunidades virtuais passou a ser de dois anos de reclusão, o que diverge da previsão do §2º do artigo 141 do Código Penal, que determina, no mínimo, três anos (um ano elevado ao triplo).
Publicada em janeiro deste ano, a Lei 14.532 equipara a injúria racial ao crime de racismo. A pena mais severa pode chegar a cinco anos de reclusão, além de multa — sem fiança, o crime é imprescritível.
A nova norma pode retroagir para beneficiar todos os acusados por crimes raciais cometidos nas redes sociais que ainda não tenham sido condenados em definitivo, ou que ainda não tenham terminado de cumprir suas penas.
O grupo de trabalho analisou casos de crimes raciais julgados em todo o país entre 2010 e 2022. Após a aplicação de filtros, a pesquisa chegou a 54 condenações e 40 absolvições. Dos réus punidos, nenhum foi obrigado a cumprir a pena em regime fechado (49 em regime aberto, três em semiaberto e duas sem detalhamento). A pena média para o crime de injúria racial foi 16,4 meses (136,66% da pena mínima) e para discriminação racial, 28,3 meses (111,16% da pena mínima).
Esses dados mostram que a cultura judicial de aplicação da pena mínima no Brasil se repete nos crimes raciais e que a maior distância do mínimo legal no caso da injúria racial se deve à incidência da causa de aumento de pena do artigo 141, III, do Código Penal, que eleva em um terço as sanções dos crimes contra a honra quando cometidos na presença de várias pessoas.
O professor e advogado Diogo Guanabara, integrante da equipe de coordenação científica do estudo, ressalta que ele confirma a vocação do Judiciário brasileiro para aplicar penas mínimas.
"A tendência agora é que as penas sejam menores do que as que estavam previstas anteriormente. Mas isso só pode ser confirmado com as próximas observações. Essa mudança legislativa, aliada a uma verificação estatística de que as condenações pelos tribunais levam em conta as penas mínimas, nos leva a essa conclusão."
Uma alternativa, segundo Guanabara, seria aplicar penas calculadas acima do mínimo previsto. "Uma saída seria uma condenação partindo de uma mediana de três anos, podendo chegar aos cinco anos da máxima."
Outros especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico reforçam a conclusão do estudo, mas lembram que a aplicação das penas com base na nova lei deve seguir cada caso concreto. Na avaliação deles, a norma foi aprovada pelo Congresso sem uma análise mais técnica das penas, com legisladores preocupados demais com a opinião pública em razão da delicadeza do tema.
Criminalista pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rafael Valentini afirma que a nova lei foi mais um exemplo de desconhecimento e falta de técnica dos legisladores sobre o sistema jurídico para editar normas penais.
"Aquilo que possivelmente não era suficiente agora ficou pior. A nova lei, que certamente visou ao recrudescimento dos atos racistas no âmbito virtual, como uma resposta à escalada dessas práticas criminosas, acabou por afrouxar a resposta penal nesse contexto. Golaço do legislador, que talvez tenha se preocupado mais em postar nas redes sociais sua concordância com o projeto de lei que deu origem a essas alterações do que com o seu conteúdo em si."
Para Valentini, as previsões do Código Penal já eram suficientes e mais firmes. "Diante da publicação da Lei 14.532/2023, o juiz terá de aplicar as novas disposições por diversos motivos. Entre eles, por se tratar de norma nova mais benéfica ao réu (o que vale para os que já estão processados ou condenados pelas disposições anteriores do Código Penal). Salvo situações em que o juiz poderá incrementar a pena diante de circunstâncias ainda mais negativas verificadas no caso concreto, a nova lei, como regra, será mais branda com os racistas."
Doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Matheus Falivene também acredita que as alterações promovidas pela Lei 14.532/2023, apesar de importantes no combate ao crime de injúria racial, revelam a atuação apenas simbólica dos legisladores.
"Ao invés de pensar de maneira sistemática eventual mudança legislativa, optou-se pelo caminho fácil do aplauso da opinião pública. Isso porque, ao categorizar a injúria racial como crime de racismo, e não mais como crime contra a honra, o legislador afasta, ao menos no âmbito hipotético, a aplicação da causa de aumento de pena para os crimes contra a honra cometidos por meio das redes sociais, prevista no artigo 141, §2º, do Código Penal."
Tal situação, segundo Falivene, faz com que, na prática, não haja maior reprovabilidade das injúrias raciais cometidas por meio das redes. "É um local onde há grande visibilidade para o fato e em que, a depender das circunstâncias do caso concreto, a pena de uma injúria comum talvez seja equivalente ou até mesmo maior, o que demonstra a falta de cuidado com a sistematização do legislador."
O criminalista Fábio F. Chaim também entende que a atual tipificação do crime de injúria racial praticada em redes sociais poderá ser mais favorável ao acusado, a depender das circunstâncias do caso concreto.
"Primeiramente, para crimes praticados entre o advento da Lei 13.964/2019 e a Lei 14.532/2023, a nova redação possui uma dosimetria menor de pena, o que em si não apenas é mais favorável como também permite o oferecimento de benefício que no período em questão não era possível (suspensão da execução da pena). Por outro lado, caso a vítima não tenha exercido o direito de representação no tempo do fato, a tipificação antiga do delito é mais benéfica ao acusado, eis que operada a decadência, inexistindo condição de procedibilidade para o ingresso de ação penal por parte do Ministério Público."
Contudo, Chaim ressalta que, com relação à tipificação da conduta para fatos anteriores à Lei 13.964/2019, a nova norma acaba sendo mais prejudicial ao acusado, pois pode suprimir a necessidade de representação para o ingresso de ação penal. "Sendo a nova redação prejudicial aos interesses do acusado, não há de se falar em sua retroatividade. Dessa forma, se a tipificação da conduta, trazida nos termos da Lei 14.532/2023, é benéfica ou prejudicial ao acusado, vai depender do contexto em que a análise é realizada, nos termos acima trazidos."
OAB-SP diverge
Por outro lado, o presidente da Comissão de Igualdade Racial da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Irapuã Santana, acredita que a interpretação dos pesquisadores não faz sentido. Ele diz que não se pode comparar a nova lei com o que estava previsto no artigo 140 do Código Penal, que trata a injúria de uma forma geral.
"É um levantamento bom, mas nesse ponto há uma interpretação equivocada. Antes, a gente tinha a injúria racial colocada no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que previa uma pena de um a três anos. Agora, a pena é de dois a cinco anos. Não tem como o aumento da pena melhorar para o réu. Pelo contrário", disse ele. "Comparar com o dispositivo anterior é outra coisa. Temos de comparar a injúria racial com a injúria racial. Não dá para compará-la com a injúria comum. Nesse sentido, a lei ficou mais gravosa."
Santana lembrou ainda que, nos casos de crimes raciais, não cabe mais o acordo de não persecução penal. "Não se pode mais fazer transação penal. O réu deve responder ao processo penal."