Fundado em 11/10/2001
porto velho, quarta-feira 16 de julho de 2025
BRASIL - Em junho, o TJ/SC implantou, por meio da resolução 7/25, a vara Estadual de Organizações Criminosas, com sede em Florianópolis e jurisdição em todo o Estado.
A iniciativa visa centralizar o processamento de crimes envolvendo organizações criminosas, mas chamou a atenção da comunidade jurídica ao instituir a anonimização total dos magistrados e servidores que atuam na unidade.
Segundo a resolução, todos os atos judiciais - decisões, despachos, registros em sistema - serão identificados apenas como oriundos da vara, sem qualquer referência nominal aos juízes ou servidores.
Resolução prevê condução de ações contra organizações criminosas por juízes e servidores anônimos.(Imagem: Reprodução/Resolução TJ-SC)
As audiências ocorrerão exclusivamente de forma online, com distorção facial e vocal dos magistrados, por meio de tecnologia desenvolvida com apoio da Microsoft, de modo a garantir seu completo anonimato - nem mesmo o gênero será perceptível.
Essa tecnologia também realizará reconhecimento facial das testemunhas e poderá distorcer suas feições e vozes, caso autorizado. Além disso, o sistema possui inteligência artificial capaz de transcrever automaticamente, de forma literal, o conteúdo das audiências.
A resolução fundamenta-se na lei 12.694/12, que autoriza a formação de colegiados para julgamento de crimes organizados, na lei 12.850/13, que define o crime de organização criminosa, e na recomendação CNJ 3/06, que estimula a especialização das unidades judiciais.
Como funcionará?
A Veoc contará com cinco magistrados e magistradas e 35 servidores e servidoras, que atuarão sob anonimato.
A unidade nasce com acervo inicial de 2.087 processos - sendo 1.841 em andamento e 246 suspensos - e concentrará os casos que envolvam crimes definidos pela lei 12.850/13, que trata das organizações criminosas.
O funcionamento da vara foi estruturado com base em quatro vetores, segundo o corregedor-geral da Justiça, desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli: eficiência, celeridade, segurança jurídica e segurança dos operadores do Direito. "Todos os fluxos processuais foram padronizados com foco na segurança e no alto desempenho no julgamento das ações dessa natureza", pontuou o desembargador.
A comarca da Capital foi escolhida como sede da unidade por concentrar o maior número de processos sobre organizações criminosas no Estado - 30,1%, conforme dados da Corregedoria-Geral. O Vale do Itajaí aparece em seguida (22,08%), e a região da Serra tem o menor índice (7,8%).
Capital da comarca foi escolhida como sede da unidade por concentrar maior número de processos sobre organizações criminosas do Estado.(Imagem: Reprodução/TJSC)
Em defesa do anonimato
Segundo noticiado pelo TJ/SC, a iniciativa busca enfrentar com mais eficiência e segurança o avanço das facções criminosas no Estado, centralizando o julgamento de processos envolvendo organizações criminosas, com exceção das ações de competência do Tribunal do Júri, de violência doméstica e do Juizado Especial Criminal.
"O julgamento dos crimes praticados por organizações criminosas exige estrutura diferenciada. Estamos criando um ambiente seguro para que magistrados possam atuar com tranquilidade e saúde mental. Isso é um verdadeiro sonho de Justiça", afirmou o presidente em exercício do TJ/SC, desembargador Cid Goulart.
A procuradora-geral de Justiça, Vanessa Cavallazzi, ressaltou que "as organizações criminosas não respeitam limites físicos" e que, mesmo com líderes presos, "continuam comandando atividades criminosas". Para ela, a nova estrutura marca um protagonismo nacional no combate qualificado a essas redes.
Já o procurador-geral do Estado, Márcio Vicari, saudou a iniciativa como exemplo de vanguarda na defesa da lei e da segurança institucional.
"Ver o Tribunal de Justiça de Santa Catarina à frente dessa ação, com respeito ao devido processo legal e proteção aos agentes públicos, é motivo de alegria para o governo do Estado."
Contra o anonimato
Já outros especialistas e entidades classificaram a nova vara como "retrocesso civilizatório".
O jurista Aury Lopes Jr., professor da PUC/RS, declarou que a resolução representa uma ruptura com os princípios fundamentais do processo penal constitucional:
"Juízes sem rosto, sem nome, sem assinatura. Um juiz que você não sabe quem é, de onde surgiu. Isso foi criado pela Resolução nº 7 do TJ de Santa Catarina. O argumento é a segurança dos juízes. Mas a pergunta é: em nome disso podemos rasgar a Constituição, o juiz natural, o direito ao confronto, o direito de alegar impedimento ou suspeição?"
Aury lembrou que o CPP não contempla a figura do juiz anônimo, e que a CF, especialmente no art. 93, IX, exige a publicidade das decisões judiciais e a fundamentação com identificação do julgador.
Para ele, a resolução também aniquila o juiz das garantias, já que os mesmos magistrados atuarão tanto na fase pré-processual quanto no julgamento, em clara violação ao art. 3º-B do CPP:
"Eles vão atuar também na investigação e depois no processo. Então, ainda por cima, mata o juiz das garantias. É algo absolutamente inconstitucional."
"Escândalo jurídico"
Em nota pública, o IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais qualificou a resolução como um "escândalo jurídico" e alertou que ela fere diversos dispositivos constitucionais e internacionais. Para a entidade, a medida transforma a vara em um tribunal de exceção, com consequências diretas sobre a imparcialidade:
"Ao permitir que magistrados escondam a identidade, a Resolução viola o direito ao julgamento por um tribunal competente, independente e imparcial, base para o exercício de todas as demais garantias do devido processo legal."
O IBCCRIM lembrou que a figura do juiz sem rosto foi testada e rejeitada em países como Colômbia e Peru, onde resultou em corrupção, violação de direitos e ineficiência na proteção de magistrados.
Além disso, destaca que a resolução catarinense usurpa competência legislativa da União, ao modificar substancialmente as regras de competência penal por norma administrativa local.
Experiência latino-americana
A figura do chamado "juiz sem rosto" tem precedentes marcantes na América Latina, especialmente nos anos 1990.
Países como Colômbia e Peru adotaram o anonimato de magistrados como estratégia para enfrentar o narcotráfico e o terrorismo.
Na Colômbia, o decreto 2.700/91 permitia a ocultação da identidade de juízes e servidores em processos penais sensíveis, com sentenças apócrifas arquivadas em sigilo.
No Peru, a lei do terrorismo (decreto-lei 25.475/92) autorizava julgamentos secretos por tribunais militares com magistrados mascarados, sem direito à identificação, contato com defesa ou contraditório.
Esses modelos foram fortemente condenados por entidades de direitos humanos. A Human Rights Watch relatou inúmeros casos de violações processuais, condenações injustas e uso sistemático de tortura.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Castillo Petruzzi vs. Peru, considerou que o juiz anônimo fere o direito ao juiz natural e à publicidade do processo, violando a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário.
E no Brasil?
Após o assassinato dos magistrados Antônio José Machado Dias e Alexandre Martins Castro Filho, em 2003, foi apresentado, pelo senador Helio Costa, o PL 87/03, que propunha decisões judiciais anônimas em casos envolvendo o crime organizado.
A proposta previa a publicação de sentenças sem identificação do magistrado, autenticadas apenas com selo do tribunal. O projeto foi amplamente criticado por juristas e rejeitado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, por afronta aos princípios do juiz natural, da ampla defesa e da publicidade dos atos processuais - todos assegurados pela CF de 1988.
O projeto acabou sendo arquivado no final da legislatura.
Em outros Estados, como Ceará (lei 16.505/18), Alagoas (lei 6.806/07) e Bahia (lei 13.375/15), foram criadas varas especializadas para crimes de organização criminosa. Entretanto, nenhuma delas previu a anonimização de magistrados ou distorção de identidade nas audiências. Nesses modelos, a segurança dos juízes é garantida por meios institucionais e estruturais - e não pela supressão da transparência.
Lei 12.694/12
Aprovada em 2012, a lei 12.694 introduziu o juízo colegiado em 1º grau como alternativa para proteção de juízes ameaçados por organizações criminosas.
A norma autoriza que, mediante decisão fundamentada, o magistrado requeira a formação de um colegiado de três juízes de mesma competência, sorteados eletronicamente, para prática de atos como decretação de prisão, prolação de sentença e concessão de benefícios penais.
Embora tenha sido divulgada à época como uma "lei do juiz sem rosto", a doutrina majoritária distingue os institutos. Em artigo publicado na Revista Libertas (UFOP), os juristas Alexandre Morais da Rosa e Ricardo Conolly analisam detalhadamente a questão.
No modelo da lei 12.694, os nomes dos magistrados são conhecidos pelas partes, o que preserva a possibilidade de arguição de suspeição e assegura o contraditório. A principal crítica, contudo, recai sobre a vedação de publicação de votos divergentes, prevista no §1º do art. 1º da norma.
Os autores reconhecem que ela não institui o juiz anônimo, mas alertam que a ocultação do voto divergente é inconstitucional por suprimir o direito da parte vencida de conhecer os fundamentos da decisão, violando o princípio da paridade de armas.
Dilema
O caso catarinense alerta para uma delicada encruzilhada do Direito contemporâneo: como proteger os agentes públicos responsáveis por julgar crimes de altíssima periculosidade, sem violar os próprios pilares de um Estado Democrático de Direito?
A criação da vara Estadual de Organizações Criminosas em Santa Catarina apresenta, sem dúvida, um avanço institucional em termos de estrutura, especialização e celeridade no julgamento de crimes complexos.
Porém, se há consenso de que o enfrentamento do crime organizado exige respostas corajosas do Estado, há também um alerta inegociável: a segurança institucional só se justifica se estiver aliada ao respeito incondicional aos direitos fundamentais. De outra forma, em nome da segurança, abre-se a porta para o autoritarismo - silencioso, disfarçado, mas devastador.
A ideia de justiça secreta, de julgadores sem rosto, retira do cidadão não apenas o direito de saber quem decide seu destino, mas também os meios para contestar parcialidades, suspeições ou erros.