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porto velho, terça-feira 26 de novembro de 2024
BRASIL - A semana foi marcada por uma escalada verborreica do presidente Jair Bolsonaro contra as instituições democráticas — especialmente a cúpula do Judiciário, como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral. Na quarta-feira (7/7), em entrevista à Rádio Guaíba, Bolsonaro insinuou — sem nenhuma prova — que os ministros do STF estariam trocando arquivamento de processos de parlamentares por apoio político ao veto à proposta de emenda constitucional que prevê a volta do voto impresso (PEC 135/2019).
Na mesma entrevista, o chefe de Estado atacou o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso. "A democracia se vê ameaçada por parte de alguns de toga que perderam a noção de onde vão seus deveres e direitos. Quando você vê o ministro Barroso ir ao Parlamento negociar com as lideranças partidárias para que o voto impresso não fosse votado na comissão especial, o que ele quer com isso? Fraude nas eleições", disparou.
Na sexta (9/7), Bolsonaro voltou à carga contra Barroso. Mas foi além: fez novas ameaças golpistas: "Não tenho medo de eleições, entrego a faixa a quem ganhar, no voto auditável e confiável. Dessa forma, corremos risco de não termos eleições ano que vem. Futuro de vocês que está em jogo", afirmou.
A ConJur ouviu advogados sobre como as ameaças, ofensas e acusações feitas por Bolsonaro podem ser enquadradas juridicamente. Segundo a Constituição, o presidente da República pode ser afastado do cargo por meio de processo de impeachment, julgado pelo Senado e que pressupõe o cometimento de crime de responsabilidade. A lei especial que prevê as condutas que configuram esse tipo de infração é a 1.079/1950. Entre elas, as que atentam contra "o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estado".
Em nota divulgada nesta sexta-feira, o próprio ministro Barroso afirmou que configura crime de responsabilidade qualquer atuação no sentido de impedir a ocorrência de eleições.
Presidentes da República também podem ser afastados caso cometam crimes comuns. Mas, nessa hipótese, a Constituição prevê que a responsabilização, durante a vigência do mandado, não pode ocorrer por "atos estranhos ao exercício de suas funções" (parágrafo 4º do artigo 86).
Em resposta às declarações de Bolsonaro, o ministro do STF Alexandre de Moraes — que também integra o TSE — afirmou que a conduta do presidente configura em tese, sim, crime comum. "Não serão admitidos atos contra a Democracia e o Estado de Direito, por configurar crimes comuns e de responsabilidade".
Para que as ameaças de Bolsonaro repercutam juridicamente, é preciso que a Procuradoria-Geral da República apresente uma denúncia ao STF. Mas o processo precisa ser autorizado previamente por ao menos dois terços dos deputados da Câmara.
Opinião de juristas
Existe jurisprudência no STF, em voto proferido pelo ex-ministro Celso de Mello, segundo a qual o presidente não dispõe de imunidade, enquanto estiver no cargo "em face de procedimentos judiciais que visem a definir-lhe a responsabilidade civil por suposta prática de infrações político-administrativas".
O voto de Celso de Mello é de 1992, durante o julgamento do ex-presidente Fernando Collor e lembrado, agora, pela professora Vera Chemin, advogada constitucionalista e mestre em Direito Público pela FGV. Para ela, as ofensas disparadas por Bolsonaro poderiam ser enquadradas como crime de injúria.
Prossegue o voto de Celso de Mello. "De outro lado, impõe-se advertir que, mesmo na esfera penal, a imunidade constitucional em questão somente incide sobre os atos inerentes à persecutio criminis in judicio. Não impede, portanto, que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal."
Tal ação dependeria, depois de manifestação do Ministério Público, de uma iniciativa de um inquérito a ser aberto pelo Supremo Tribunal Federal. No caso de ser aprovada o ajuizamento da ação penal, a Câmara dos Deputados deveria se manifestar e, para aprovação do inquérito são necessários dois terços dos votos, conforme a Constiuição.
O advogado José Eduardo Faria, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e chefe do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, acredita que as condições políticas do presidente estão se deteriorando rapidamente — como demonstram as pesquisas mais recentes — e que ele ainda se sustenta no núcleo duro de seus apoiadores mais renitentes e em uma parcela minoritária das Forças Armadas.
No caso do Judiciário, ele afirma que os episódios de constante agressão ao STF, ao TSE e ao ministro Barroso vão acabar unindo os magistrados. "A autoridade moral do Supremo depende da unidade deles", diz o professor. As agressões ao ministro Barroso vão unir toda a magistratura, no seu entender. "Isso vai dar uma unidade que permitirá ao Poder Judiciário dar um basta, aplicando a Constituição. É uma questão de tempo", salienta.
Para Faria, no momento em que ficar claro que as chances de reeleição do presidente forem mínimas, ele pode perder o apoio do agrupamento político que lhe dá sustentação no Parlamento, o chamado "centrão". Por não saber dialogar e viver estimulando conflitos, terreno no qual anda frequentemente, Bolsonaro poderá ficar isolado, falando para seus grupos de apoiadores mais renitentes.
O advogado Diogo Rais, co-fundador do Instituto Liberdade Digital e professor de Direito Eleitoral e Direito Digital, afirma que os ataques de Bolsonaro são "gravíssimos", por ocorrerem dentro da própria estrutura do poder. "Isso pode provocar uma espécie de implosão, uma bomba colocada dentro de um prédio. Quando o presidente ataca o processo eleitoral, ele não ataca um procedimento eleitoral. Ataca uma instituição que tem um arranjo constitucional muito forte, já que o presidente do TSE é um dos ministros do Supremo. O ataque é gravíssimo dentro da estrutura estatal. Diferente de outros porque vem de dentro do poder", salienta.
Para ele, "estamos prestes a observar alguma reação mais contundente". "O Judiciário sozinho não terá como reagir à altura. A legitimidade do STF vem da Constituição, não da população, como quer fazer crer Bolsonaro. Ele desafia a Constituição, deslegitima o STF e parece fazer crer que só existe legitimidade no voto."
A reação aos destemperos de Bolsonaro e à sua escalada autoritária, acredita Rais, viria do Legislativo. "A presidência da Câmara e do Senado tem uma estrutura que dificilmente ele toparia desafiar. Acredito que no Legislativo haja muitos parlamentares incomodados, pensando 'hoje é o STF, stf amanhã somos nós'. Creio que haverá uma espécie de proteção constitucional contra a ruptura. Na hora em que isso acontecer, com dois poderes (Legislativo e Judiciário) unindo forças, o outro poder (Executivo) terá que ceder", diz.