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porto velho, terça-feira 5 de novembro de 2024
MUNDO: Ervas para induzir ao aborto. Comércio ilegal de medicamentos entre estados. Misoprostol disfarçado de cartão de visita e produzido em laboratório caseiro para venda online. Risco de morte para gestantes causado por infecção generalizada. Aborto negado em caso de estupro e incesto. Poderia ser no Brasil, mas não é.
No ano da eleição presidencial dos Estados Unidos, é este o cenário no estado ultraconservador do Texas, para onde Kamala Harris viajou no fim de outubro para fazer um de seus maiores comícios de campanha e receber o apoio oficial de Beyoncé, cidadã texana ilustre. O Texas é um dos bastiões do conservadorismo e da extrema direita. No evento, na cidade de Houston, a candidata democrata usou o cenário local alarmante para amplificar sua mensagem às mulheres de todo o país: uma vitória de Donald Trump, nas eleições do dia 5 de novembro, coloca em risco os direitos reprodutivos das mulheres em todo o país. O que acontece hoje no Texas pode se tornar realidade nos demais estados.
“O Texas é o marco zero dos EUA para a proibição extrema ao aborto”, disse Kamala, no estádio lotado na maior cidade do estado e quarta maior dos país. Como tudo é superlativo no Texas – é também o segundo mais rico do país –, a estratégia de Kamala foi fazer sua mensagem reverberar para o resto dos EUA, já que os republicanos (partido de Trump) vencem as eleições ali desde 1994.
Em meio a cerca de 30 mil de pessoas, boa parte delas mulheres negras que se acotovelavam para ver Kamala e Beyoncé, a parteira Rowan Twosisters, voluntária do Partido Democrata, temia as possíveis consequências da eleição de Trump em um estado com leis já draconianas, que impedem mulheres de abortar mesmo em casos de estupro e incesto.
“Já tem muita gente em risco e haverá ainda mais. Caso Trump seja eleito, mulheres vão morrer. Meninas que são estupradas vão morrer. Fazer um parto fora do hospital será um desafio tão grande, porque não teremos as medicações que a gente precisa”, disse.
Dias antes do comício, a uma hora de Houston, a professora Dulce* comprou por 50 dólares (cerca de R$ 256) comprimidos misoprostol e mifepristona para interromper uma gravidez de sete semanas. Se tivesse buscado os serviços de saúde locais, ela não teria conseguido o procedimento.
Dulce abortou em casa, na cidade universitária de College Station, com uma amiga presente. “Foi horrível”, foi só o que ela conseguiu dizer, dois dias após o aborto. Os comprimidos chegaram à sua residência pelos correios. Uma pessoa fez a compra em outro estado e mandou para ela, em nome de um destinatário fictício.
Antes de tomar os medicamentos, Dulce não quis buscar organizações que oferecem ajuda e acompanhamento online. Ela temia que seus dados fossem rastreados e ela, descoberta pelas autoridades locais.
Assim como no Brasil e em outros países onde o aborto é permitido em apenas alguns casos, a parteira Rowan Twosisters e outras mulheres lançam mão de recursos menos seguros para ajudar mulheres.
“Uma gestante de oito semanas me procurou porque o feto parou de se desenvolver. O hospital se recusou a usar medicamentos que poderiam ajudá-la no aborto espontâneo e também se negou a fazer uma curetagem, porque achou que isso poderia configurar um aborto desnecessário. Ela teve que esperar que o corpo expelisse, mas ela começou a ter risco de sepsemia. Então usamos ervas para remover o que havia. Mas nem sempre elas funcionam.”
Rowan conta que a mulher continuou com exames positivos para gravidez: “Eu não sabia o que fazer quando os exames seguiam dando positivo! Sou apenas uma parteira, que trabalha em cenários de baixo risco. Não posso lidar com essas situações!”.
Voluntária do Partido Democrata, Rowan revela a sugestão que tem dado a algumas texanas que buscam por ajuda: “Estou aconselhando as pessoas a estocarem os medicamentos abortivos que conseguimos comprar em outros estados, porque não sabemos o que vai acontecer depois de 5 de novembro”.
Ela lembra que o misoprostol não é usado apenas para aborto, mas também para controlar hemorragias no pós-parto, portanto, a necessidade do medicamento vai além da interrupção da gravidez e pode garantir a sobrevivência da gestante: “Muitas vezes os bebês nascem e a gente precisa dos compridos para parar o sangramento da gestante e concluir o parto de uma forma segura”.