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porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
BRASIL: Os governadores dos sete estados que compõem as Regiões Sul e Sudeste apresentaram na última quarta-feira (27/3) quatro propostas para “qualificar o combate ao crime organizado”. Entre as sugestões, estão mudanças nos requisitos para a concessão de liberdade provisória nas audiências de custódia e para legitimar abordagens policiais.
Os integrantes do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud) também defendem a liberação do monitoramento eletrônico pela polícia sem ordem judicial, além do acréscimo de uma qualificadora no crime de homicídio nos casos em que for cometido por ou a mando de organização criminosa.
As propostas foram entregues ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e aos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Especialistas em Direito Penal ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico fizeram duras críticas à iniciativa. Segundo eles, trata-se de puro e simples populismo penal e uma mera tentativa de ganho eleitoral.
O advogado e parecerista Lenio Streck é contundente em sua crítica: “O sujeito perdeu o relógio em um campo escuro. E foi procurá-lo embaixo de um poste de luz. Perguntado acerca da bizarrice, respondeu: ‘Ora, aqui é mais fácil’. Eis a alegoria para o projeto dos governadores. Um atalho. É mais fácil resolver o problema prendendo. Aumentando penas. Reduzindo as possibilidades de liberdade. Reforma com pés-de-curupira”.
Streck classifica a sugestão de mudança na concessão de liberdade provisória nas audiências de custódia como um “torniquete” que institucionaliza uma espécie de “prisão obrigatória”. Ele também é cético sobre o afrouxamento dos requisitos autorizadores da abordagem policial. “Compreendem-se como fundadas suspeitas aquelas que o policial assim entender. Quer dizer: suspeito é o que o policial disser que é. Um Humpty Dumpty — personagem de Alice Através do Espelho — que dá às palavras o sentido que quer, transportado para dentro do CPP. Depois nos queixamos por que não ganhamos um Nobel”.
Ele também enxerga a possibilidade de monitoramento eletrônico sem autorização judicial como a institucionalização do big brother do livro 1984, de George Orwell. Já a qualificadora adicional para o crime de homicídio é, para Streck, “jogar para a torcida”.
Welington Arruda vê nas propostas potencial para agravar o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro. “As medidas propostas no PL, como a ampliação das situações que justificam prisões preventivas e o acesso irrestrito a dados de monitoramento eletrônico, podem parecer soluções imediatas para problemas complexos. No entanto, elas correm o risco de agravar a superlotação carcerária, penalizar desproporcionalmente indivíduos ainda não julgados e legitimar práticas que beiram a violação dos direitos civis, especialmente em contextos de discriminação sistêmica.”
O criminalista afirma que a segurança pública deve ser encarada não apenas sob a ótica repressiva, mas como um desafio que exige soluções sociais, educacionais e econômicas. Para ele, é fundamental o combate à desigualdade social por meio de políticas públicas inclusivas e de fomento à educação e ao emprego.
Luís Guilherme Vieira tem entendimento parecido: “O Brasil, somente contabilizando os enjaulados de hoje, já detém a terceira maior população carcerária do mundo, apenas atrás dos Estados Unidos e da China. Em período eleitoral, essa temática, que empresta índices grandiosos de popularidade, acaba desvirtuada. A sociedade civil não suporta mais ser enganada por falaciosos discursos e projetos de lei que não levaram nada a lugar algum”.
Por sua vez, Flávia Rahal segue na mesma linha. “Enquanto as propostas para melhoria da segurança pública voltarem-se ao endurecimento das normas penal e processual penal, continuaremos a ver o aumento da criminalidade e da população carcerária. O tempo passa e as autoridades não entendem que esse não é o caminho certo para a solução da violência.”
O doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) Davi Tangerino faz uma provocação sobre as propostas de mudanças na decretação da liberdade provisória: “O sujeito é preso por furto simples, de pequeno valor (mas não insignificante). É liberado na custódia. Três meses depois, continua pobre e comete outro furto, de pequeno valor (mas não insignificante). Ele tem de ser preso?”, questiona.
Tangerino ressalta que a pena aplicada no exemplo hipotético jamais seria de regime fechado, de modo que seria um contrassenso determinar a prisão preventiva nesse caso. “São amarrações burras e exageradas. O que deveríamos perguntar aos governadores é: onde estão os dados? Em quantos e em quais casos houve liberação indevida nas audiências de custódia?”.
Rodrigo Faucz também enxerga as propostas como danosas, já que, segundo ele, não são suficientes para prevenir o crime, melhorar o sistema carcerário ou mesmo dar uma resposta à sociedade em relação à quantidade de crimes cometidos.
“É um retrocesso civilizatório, tendo em vista que nas últimas décadas nós temos diversos estudos de mecanismos, de instrumentos que poderiam auxiliar de alguma forma na diminuição da criminalidade, como distribuição de renda e educação, que são simplesmente ignorados pela política pública implementada, principalmente pelos legisladores. Essas propostas dos governadores têm um cunho discriminatório bastante elevado, que vai potencializar o viés racista que já existe no nosso sistema de Justiça. Essas propostas são absurdas.”