Fundado em 11/10/2001
porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
BRASIL: A forma como o Superior Tribunal de Justiça decidiu tratar o estabelecimento do marco temporal para a contagem da progressão do regime de cumprimento de pena, além de conter uma contradição interna, deve estender o encarceramento no Brasil.
Há apenas dois momentos para mudança de regime durante o cumprimento da pena: do fechado (encarceramento total) para o semiaberto (o preso é autorizado a deixar a prisão para trabalhar); e do semiaberto para o aberto (em casa de albergado ou na própria casa).
A Lei de Execução Penal exige, em seu artigo 112, o cumprimento de dois requisitos para a progressão de regime:
— Requisito objetivo: que o preso tenha cumprido um tempo mínimo de pena, que varia de acordo com o tipo de crime e o histórico criminal;
— Requisito subjetivo: que o preso tenha bom comportamento, comprovado pelo diretor do estabelecimento prisional, e resultado favorável no exame criminológico.
Na última quarta-feira (14/8), a 3ª Seção do STJ fixou tese vinculante no sentido de que a contagem do tempo mínimo para a progressão de pena começa quando o último requisito é preenchido. Com isso, o colegiado afastou a ideia de que o marco temporal seria a data da decisão do juiz que concede a progressão de regime.
Isso porque a decisão tem natureza declaratória e não constitutiva — ela apenas declara uma realidade que já existia a partir do momento em que ambos os requisitos foram preenchidos.
Nesse cenário, o marco para a progressão será o requisito subjetivo, já que a praxe é só avaliar o comportamento do preso quando o tempo mínimo para a progressão tiver sido alcançado.
E, na maioria dos casos, o marco será o exame criminológico, que se tornou obrigatório para a progressão de todos os presos desde a entrada em vigor da Lei 14.843/2024. Por se tratar de um procedimento complexo e, em tese, mais demorado do que a mera declaração do diretor do presídio sobre o preso, o exame deverá ser sempre o último requisito preenchido.
Isso gera um problema porque a jurisprudência do STJ entende que, havendo pedido de exame criminológico, a data para calcular a nova progressão de pena é o dia do parecer técnico favorável. Nesse caso, o STJ considera que o laudo produzido no exame tem natureza constitutiva e não declaratória.
Aí reside a contradição, uma vez que o exame criminológico consiste em uma perícia em que uma equipe de especialistas apenas declara que o preso tem condições de começar a ser reinserido na sociedade.
Essa contradição foi debatida no julgamento da 3ª Seção. O defensor público por São Paulo Rafael Muneratti disse na sustentação oral que o laudo criminológico não cria o requisito subjetivo, apenas atesta sua existência.
Por isso, pediu que o colegiado mudasse a jurisprudência para considerar que esse requisito é atendido na data em que o juiz pede a produção do exame.
Esse ponto é sensível porque o Brasil não está preparado ou equipado para examinar criminologicamente todas as pessoas que se habilitarão a progredir de regime.
Em São Paulo, segundo Muneratti, a espera pelo exame varia de quatro a seis meses. Pela jurisprudência atual, trata-se de período que não contará para a progressão para o regime posterior.
Um estudo do Conselho Nacional de Justiça estima que a exigência do criminológico tem potencial para, em 12 meses, impedir que 283 mil pessoas progridam regularmente de regime.
As consequências dessa extensão do encarceramento serão um custo adicional de R$ 6 bilhões por ano para os cofres públicos e uma piora drástica do déficit de vagas nos presídios, que pode triplicar.
“Vai demorar mais tempo para o preso chegar ao regime aberto”, resumiu Muneratti. “E não é culpa do preso. É culpa do sistema, que demora para fazer o exame.”
Três dos nove ministros habilitados a votar no julgamento se sensibilizaram com as alegações da Defensoria Pública.
O desembargador convocado Otávio Almeida de Toledo destacou que o cumprimento do requisito subjetivo vai ficar ao sabor da rapidez com que será feito o exame atestando que o preso tem condições de reinserção social. “Ele já tinha cumprido tudo que veio atestado”, alertou Toledo.
A ministra Daniela Teixeira também votou por atender ao pedido dos defensores, destacando que, se o teste atrasar a progressão de 283 mil pessoas, o STJ receberá 283 mil Habeas Corpus avisando que há pessoas que poderiam progredir, mas aguardam o exame.
Por isso, segundo ela, seria o caso de considerar como marco temporal a data em que o juiz pede o exame. “Esse atraso no criminológico vai prejudicar todo o sistema”, disse Daniela.
“Sempre haverá possibilidade de pegar esse preso e revertermos onde ele está para onde estava antes. O que não é possível é voltar a vida desse preso anos depois que ele ficou injustamente preso”, acrescentou a magistrada.
O ministro Rogerio Schietti seguiu a mesma linha ao apontar a contradição da tese, que considera a decisão do juiz que autoriza a progressão declaratória, mas o resultado do exame, constitutivo.
“Se temos alguém que passa por avaliação, não podemos entender que a demora do Poder Executivo em declarar que aquela pessoa tem bom comportamento e está preparada para o retorno ao convívio possa vincular o Judiciário na avaliação de algo que já existia.”
Para Schietti, o STJ acabou por validar uma política encarceradora. “É uma situação que vai se agravar sobremodo, com tensão crescente, e isso vai se refletir no Judiciário e na sociedade como um todo.”
A posição vencedora não invadiu a discussão sobre essa questão, limitando-se a dizer que o marco temporal da progressão é mesmo a data em que é alcançado o último requisito.
“Pode realmente haver excesso de prazo na confecção do laudo criminológico ou do atestado. Pode-se inclusive configurar constrangimento ilegal, que seria reparável por Habeas Corpus. Mas entendo que não há interferência na tese”, disse Jesuíno Rissato.