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porto velho, domingo 22 de dezembro de 2024
MUNDO- Quando a repressão policial na África do Sul assassinou operários, durante o ano de 2012, por causa de reivindicações e greves em áreas de produção de platina, o espectro de Nelson Mandela tocou fundo na alma do professor africano Kabengele Munanga.
Mesmo morando há anos no Brasil, e sendo respeitado, suas raízes africanas sentiram o chamado banzo, saudades de sua terra, da luta e da esperança de seu povo em viver em um país unido e justo. Ele sentia pela África do Sul.
Aqueles massacres o lembraram dos assassinatos de Sharpeville, em 1960, que impeliram Mandela, um pacifista por essência, a ingressar na luta armada contra as atrocidades de um apartheid que teimava em se manter em meio à violência e à segregação racial.
Depois, vencido o apartheid, a África do Sul tinha tudo para caminhar sem tanta turbulência rumo ao sonho de Mandela e das comunidades negras. E Jacob Zuma assumiu o comando na ocasião. Ele, que foi vice de Mandela e em sua retórica defendia a transparência e a igualdade social, se viu atolado em denúncias, em vez de governar com tranquilidade.
Munanga faz um paralelo entre as duas épocas.
— Nelson Mandela lutou contra o apartheid, agora a África do Sul vive uma falha de consturção do sistema, claro que contraria o legado de Mandela, mas nada tem a ver com sua luta e as conquistas. A corrupção também é algo do ser humano, dirigentes, neste contexto, são corruptos e, nessa fase de construção nacional, Zuma se deixou levar.
Com as acusações de que usou dinheiro federal para financiar obra particular, Zuma está agora na iminência de renunciar à presidência do país, cargo que ocupa desde 2009, em trajetória acompanhada de várias outras acusações. O jornalista Manuel Louro, do Público, de Portugal, por exemplo, afirmou que já não se trata de uma questão de “se” mas sim de “quando” Zuma irá deixar o governo.
Mesmo com os deputados tendo rejeitado as acusações, a Corte Constitucional (Suprema Corte) determinou em dezembro último que o processo de impeachment fosse instaurado, o que para Munanga, professor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo, acaba sendo algo positivo. É um reflexo dos anseios de uma população que quer ir além nas conquistas.
Ele combate aquela velha frase, vinda de mal-intencionados, na qual reduz a luta contra o apartheid, uma das mais nobres da história da humanidade, a um reles jogo de interesses.
E acredita que a postura do ANC (Congresso Nacional Africano), o mesmo partido de Mandela, apoiando uma negociação para a saída de Zuma, é uma mostra de que a África do Sul, mesmo enfrentando desigualdades similares às do tempo de segregação, pode evoluir para uma sociedade mais igualitária e justa. O atual vice-presidente, Cyril Ramaphosa, substituiu Zuma na liderança do partido em dezembro último.
— Isso prova de que a África do Sul está avançando, já que, com Zuma, não houve distribuição de renda e novos avanços. Uma população consciente tem de reagir, não tem de deixar as coisas se degradarem.
Munanga, de 77 anos, nasceu na aldeia de Bakwa Kalonji, no Congo Belga (atual República Democrática do Congo), como membro do povo Luba. Cresceu brincando nos campos, em meio à pobreza e entre trabalhadores rurais. E se transformou em um respeitado especialista nos assuntos do continente, tendo se estabelecido no Brasil como antropólogo em 1980.
O sonho de Mandela, membro do povo Thembu, ecoou também em Munanga, enquanto buscava passar aos seus alunos a cultura e a história da África, o que também não deixou de ser uma luta contra o apartheid. E, diante dos novos desafios, o sonho ecoa até hoje.