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porto velho, domingo 24 de novembro de 2024
BRASIL: A descriminalização do porte de maconha para consumo próprio pelo Supremo Tribunal Federal (STF) levantou uma série de dúvidas sobre os impactos da substância psicoativa na saúde.
Um dos pontos envolve o chamado transtorno por uso de cannabis, uma condição ainda pouco estudada pela ciência e praticamente desconhecida pelo grande público.
O quadro, que pode afetar até dois em cada dez usuários de maconha (entenda mais abaixo), está relacionado ao abuso do consumo da droga e gera perdas significativas no bem-estar e na qualidade de vida.
O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que existe uma grande dificuldade em diferenciar usuários de dependentes — ou aqueles indivíduos que não se encaixam nem na primeira e nem na segunda categoria.
"Mas o transtorno por uso de cannabis seria equivalente ao que se chama de dependência", explica ele.
Segundo o psiquiatra, essa condição pode se manifestar de diferentes maneiras. Para começar, ela está relacionada à quantidade e à frequência no consumo.
"O transtorno atrapalha as atividades habituais de trabalho e estudo, prejudica as relações interpessoais e gera desinteresse."
"Além disso, qualquer pensamento ou tentativa de reduzir o consumo gera sintomas intensos de ansiedade ou depressão", caracteriza Silveira, que estuda dependência há 40 anos.
Silveira orientou uma das primeiras (e únicas) pesquisas a avaliar a saúde mental e a qualidade de vida de pessoas que fazem uso recreativo de cannabis no Brasil. O trabalho foi publicado em dezembro de 2021.
Por meio de um questionário online, que contou com a participação de 7.405 adultos, os especialistas descobriram que 17,1% dos participantes se classificavam como usuários ocasionais e 64,6% diziam fazer consumo frequente de maconha.
Já 7,7% dos respondentes se declararam como "usuários disfuncionais", algo que pode ser classificado como um transtorno no uso dessa substância.
"Esse número se aproxima muito ao que é visto em outros levantamentos. Nos Estados Unidos, cerca de 9% dos usuários de cannabis apresentam dependência", compara Silveira.
Como comparação,
O inquérito brasileiro sobre a cannabis ainda observou que os tais usuários disfuncionais eram mais afetados em termos de bem-estar: eles tinham uma pior qualidade de vida, além de apresentarem com mais frequência doenças como depressão e ansiedade em comparação com aqueles que se entendiam como usuários ocasionais ou frequentes.
Uma outra investigação realizada pelo Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, nos Estados Unidos, calculou a prevalência do transtorno no Estado de Washington, onde a maconha para uso recreativo está legalizada (e não apenas descriminalizada, como é o caso do Brasil após a decisão do STF).
Os dados foram publicados no periódico especializado Jama Network Open em agosto de 2023.
Os autores entrevistaram 1.463 indivíduos que haviam feito uso de cannabis nos 30 dias anteriores.
Seguindo critérios estabelecidos nos manuais internacionais de psiquiatria, eles observaram que o transtorno no uso desta substância afetava 21,3% dos participantes, ou um quinto do total da amostra.
A taxa foi a mesma entre aqueles que consumiam maconha para uso recreativo, medicinal ou com ambas as justificativas.
Mas a gravidade do quadro variou de forma significativa entre essas três turmas.
Segundo a pesquisa, 1,3% dos usuários de cannabis com fins medicinais apresentavam o transtorno em níveis moderados ou severos.
Essa taxa subiu para 7,2% naqueles que faziam uso recreativo e para 7,5% no grupo misto (que mesclavam uso medicinal e recreativo).
Mas como esses números se comparam à dependência de nicotina e álcool, drogas legalizadas e amplamente consumidas em boa parte do mundo?
Um estudo dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos levantou dados de 152 mil americanos que haviam fumado cigarros de tabaco nos 30 dias anteriores. A dependência à nicotina foi encontrada em 56% dos participantes.
Alguns outros trabalhos sugerem que até 90% das pessoas que fumam todos os dias desenvolvem algum grau de dependência ao cigarro.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o tabagismo mata 8 milhões de pessoas todos os anos, incluindo 1,3 milhão de óbitos que foram expostos ao fumo passivo.
Já um relatório do Centro Colaborativo para Saúde Mental do Reino Unido calcula que 87% da população inglesa acima dos 16 anos consome bebidas alcoólicas.
Eles estimam que 24% dessa população ingere essa substância de um jeito que pode ser classificado como "danoso" ou "potencialmente danoso" para a saúde e o bem-estar.
A pesquisa estima que 4% desses indivíduos podem ser considerados dependentes do álcool.
O Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos EUA, projeta uma taxa de 2,5% de dependência de álcool entre os brasileiros.
A OMS estima que, ao redor do mundo, cerca de 2,6 milhões de mortes foram causadas pelo consumo de álcool em 2019.
Vale ponderar aqui que o fato de cigarro e álcool serem drogas legalizadas há muitos anos em diversos países facilita a coleta de dados e a elaboração de estatísticas por instituições e pesquisadores.
No caso da maconha, essas informações sobre dependência eram um tanto nebulosas — e começaram a ficar mais sólidas recentemente, com a descriminalização ou a legalização da substância em alguns locais.
Silveira explica que o transtorno no uso de cannabis acontece por uma somatória de diferentes fatores.
"Um sinal de alerta é o padrão de uso, quando o indivíduo altera a frequência ou a quantidade de consumo. Por exemplo, se ele passa a fumar todos os dias", pontua o psiquiatra.
"Claro, se a pessoa fuma meio cigarro ao dia, antes de dormir, isso não é algo que gera preocupação. Mas se ele já acorda com aquela necessidade incontrolável de acender um baseado, há um indício de problemas", pondera ele.
Outro comportamento que pode desembocar no transtorno envolve uma espécie de transição do uso recreacional para um consumo que envolve justificativas de bem-estar ou saúde — sem a devida avaliação de um profissional da área.
"É o caso da pessoa que está nervosa, triste, ansiosa e decide fumar maconha como uma forma de aplacar esses sintomas", exemplifica o médico.
O psiquiatra ainda destaca dois grupos onde o risco de danos relacionados ao consumo de cannabis é mais elevado.
"Primeiro, os jovens. É absolutamente contra-indicado fumar maconha antes dos 21 anos. Essa é a idade em que o amadurecimento do cérebro termina", cita ele.
Antes dessa idade, os compostos presentes na planta podem afetar o desenvolvimento dos neurônios e das demais células do sistema nervoso — o que gera repercussões negativas pelo resto da vida.
O pesquisador explica que a maioria dos problemas psíquicos relacionados à cannabis aparece em indivíduos que experimentaram essa substância psicoativa em idades precoces.
"O segundo grupo inclui pessoas que têm casos de esquizofrenia na família. Nesse contexto, o consumo de cannabis pode ser bastante prejudicial", complementa ele.
Para os casos em que o transtorno de uso de cannabis é identificado, Silveira destaca dois possíveis caminhos de tratamento.
"O primeiro é a estratégia de redução progressiva, também conhecida como redução de danos", cita ele.
Essa alternativa envolve diminuir a quantidade consumida aos poucos. Também é possível modificar a rotina do indivíduo — alterando os horários em que ele estava acostumado a acender um baseado, por exemplo.
A Associação Americana de Psiquiatria aponta que sessões de psicoterapia podem ajudar nesse processo.
Em alguns casos, os médicos também prescrevem medicações com canabinoides, para diminuir aos poucos a necessidade da substância.
"O segundo caminho é interromper o uso de forma repentina e focar o tratamento nos problemas que vão surgir na sequência, como é o caso de ansiedade ou depressão", acrescenta o médico.
Por fim, Silveira avalia que a recente decisão do STF pode melhorar a forma como o transtorno de uso de cannabis é tratado no país.
"Estamos 30 anos atrasados nesse debate. Enquanto o mundo todo discute a legalização da maconha, nós ainda estamos falando de descriminalização", observa ele.
"O Brasil estava do lado de Irã, China, Indonésia e outros países totalitários ao criminalizar o porte de maconha para consumo próprio", opina o médico.
Silveira entende que um cenário de criminalização do porte de cannabis para uso pessoal — como o Brasil tinha até poucos dias atrás — gera muitas dificuldades do ponto de vista da saúde pública.
"A pessoa fica constrangida em falar abertamente que usa maconha, pelo medo de ser rotulada como criminosa", argumenta ele.
"A descriminalização facilita o acesso aos serviços de saúde. E eu, como médico, posso falar abertamente sobre uso seguro e formas de prevenção ou tratamento para esses casos de dependência", conclui ele.