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porto velho, sábado 30 de novembro de 2024
SÃO PAULO - SP - Análises preliminares sugerem que a nova variante tem o triplo de capacidade de reinfectar pessoas que já passaram pela covid-19, em comparação às versões anteriores do SARS-CoV-2
A variante ômicron do coronavírus é “uma espécie de Frankenstein”, nas palavras da virologista Inmaculada Casas. Apresenta mais de meia centena de mutações, 36 delas concentradas na espícula, a proteína que usa como chave-mestra para invadir as células humanas.
Os anticorpos —as defesas humanas geradas por uma vacina ou por uma infecção prévia— sabem reconhecer a espícula do coronavírus original de Wuhan e anulá-la. O grande temor é que as inúmeras mutações na espícula da ômicron despiste esses anticorpos, diminuindo a eficácia das vacinas. Um estudo preliminar da Universidade de Stellenbosch (África do Sul) sugere que, em comparação a variantes anteriores, como a delta (hoje dominante no planeta), a ômicron tem o triplo de capacidade de reinfectar pessoas que já tiveram covid-19.
Algumas mutações da ômicron, além disso, alteram sua forma de se acoplar aos receptores das células humanas, segundo os modelos bioinformáticos do virologista Javier Jaimes. Os efeitos desta novidade ainda são um enigma. Uma equipe internacional de cientistas coordenada pelo Instituto Nacional para as Doenças Infecciosas da África do Sul calculou na sexta-feira que a ômicron se espalha com o dobro da velocidade que a delta. A explicação poderia ser uma maior transmissibilidade, por sua melhor capacidade de penetração nas células humanas, ou uma maior habilidade para driblar anticorpos e reinfectar. Ou ambas.
O inédito acúmulo de mutações na variante ômicron poderia mudar por completo o comportamento do vírus. Ou não. A virologista Sonia Zúñiga recorda que “em biologia 1 mais 1 nem sempre é igual a 2”.
Passarão semanas, ou dias na melhor das hipóteses, até que os cientistas consigam um retrato real da variante ômicron. Alguns pesquisadores, entretanto, já se lançaram a fazer conjecturas com base nos poucos dados disponíveis no sul da África.
O biólogo Tom Wenseleers, da Universidade de Leuven (Bélgica), calcula que cada infectado pela ômicron contagiaria em média mais de oito pessoas numa população não imunizada, frente a 2,5 do vírus original de Wuhan e de 6,5 da delta, a variante mais transmissível até agora. Wenseleers acredita também que a capacidade da ômicron de reinfectar pode ser inclusive cinco vezes maior que a das versões anteriores. Esses resultados ainda precisam ser vistos com cuidado, embora um dos principais especialistas no novo coronavírus, o biólogo dinamarquês Kristian Andersen, opine que a realidade não deva ser muito diferente.
A ômicron é um Frankenstein porque reúne dezenas de mutações vantajosas para o vírus e já vistas separadamente nas quatro piores variantes anteriores, as identificadas na Índia, Brasil, Reino Unido e África do Sul em 2020. Os reais efeitos da combinação das 36 mutações em sua espícula são ainda um mistério.
O coronavírus SARS-CoV-2 é basicamente uma mensagem de 30.000 letras, com as instruções para sequestrar uma célula humana e fazer milhares de cópias de si mesmo. Cada uma dessas letras é simplesmente a inicial de um composto químico com diferentes quantidades de carbono, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio. Há quatro tipos: adenina (C₅H₅N₅), citosina (C₄H₅N₃O), guanina (C₅H₅N₅O) e uracila (C₄H₄N₂O₂). Esse breve texto químico já matou mais de cinco milhões de pessoas. Desde sua aparição no final de 2019, o coronavírus se multiplicou vários quatrilhões de vezes, cometendo erros de digitação, trocando uma letra por outra, que às vezes são vantajosos, por puro acaso.
A virologista Theodora Hatziioannou acredita que a ômicron será sem dúvida “a variante mais resistente” às defesas humanas. Sua equipe na Universidade Rockefeller, em Nova York, modificou em setembro um vírus inofensivo do gado, acrescentando-lhe uma espícula do coronavírus com 20 mutações, muitas delas também presentes agora na ômicron. Seu vírus artificial foi capaz de escapar quase por completo aos anticorpos gerados por uma infecção prévia por covid-19 e também dos produzidos por duas doses de uma vacina de RNA, como as da Pfizer e Moderna. “A ômicron será muito resistente aos anticorpos neutralizantes. Posso fazer esta previsão com bastante confiança graças à nossa espícula sintética”, alerta Hatziioannou.
As defesas humanas, entretanto, são um potente exército no qual os anticorpos são apenas um batalhão. As vacinas e as infecções prévias pelo coronavírus induzem, por exemplo, à formação de linfócitos T, glóbulos brancos que aniquilam as células infectadas. Hatziioannou espera que as vacinas continuem evitando a imensa maioria dos casos graves de covid-19 e as mortes, como até agora, embora seja preciso esperar para confirmar isso. “Logo veremos”, diz a pesquisadora.
A microbiologista Patricia Muñoz encabeça a equipe que identificou o primeiro caso da ômicron na Espanha, o de um homem de 51 anos, vacinado com duas doses da Pfizer, que chegou a Madri procedente da África do Sul em 28 de novembro, com sintomas de pouca importância. As dezenas de casos que estão sendo vistas atualmente na Europa não são graves. “Esta variante poderia substituir a delta, acho absolutamente possível, mas as vacinas estão fazendo que a enfermidade pela ômicron seja leve. Estamos mais preparados que nas outras ondas, com muita gente vacinada [90% da população-alvo na Espanha] e com a população alerta”, tranquiliza Muñoz, diretora de Microbiologia do Hospital Gregorio Marañón, em Madri.
A virologista Inmaculada Casas dirige a rede espanhola de vigilância genômica do coronavírus e está em contato permanente com as autoridades europeias. “A capacidade de controle dos anticorpos produzidos nas pessoas vacinadas é ótimo frente à ômicron. As cifras de hospitalizações e ocupação de UTIs [por pessoas vacinadas] são extremamente baixas”, aponta Casas, citando dados preliminares apresentados na sexta-feira por seus colegas sul-africanos. A virologista insiste na necessidade de oferecer uma terceira dose da vacina a toda a população, começando pelos grupos mais vulneráveis e após imunizar as crianças ainda antes do Natal. “Os países sem acesso à vacina deveriam ser nossa prioridade”, adverte a pesquisadora, do Centro Nacional de Microbiologia, na localidade de Majadahonda, na região de Madri. Só 3 em cada 100 pessoas foram completamente vacinadas contra a covid-19 nos países mais pobres do planeta.
A virologista Sonia Zúñiga está perplexa. A ômicron é tão diferente das demais variantes conhecidas que alguns cientistas cogitaram que o vírus pode ter evoluído paralelamente em animais antes de retornar aos humanos. “É uma possibilidade muito real, e é algo certamente preocupante, que terá que ser estudado bem a fundo”, aponta Zúñiga, que trabalha numa vacina experimental contra a covid-19 no Centro Nacional de Biotecnologia da Espanha, em Madri. A pesquisadora recorda que há mais de um ano já foram registrados na Dinamarca casos em que o coronavírus saltou para criações de visons por causa de funcionários que trabalhavam com os animais, e depois voltou aos humanos incorporando mutações adquiridas naqueles mamíferos. “Não seria um disparate. Já aconteceu”, salienta Zúñiga.
A hipótese mais cogitada, entretanto, é que a ômicron evoluiu durante meses em uma pessoa previamente imunodeprimida por outra doença, como a aids. Quase um em cada cinco sul-africanos é positivo para o HIV. O coronavírus teria tido tempo de treinar contra defesas baixas e o uso desesperado de antivirais. Há um ano, um homem de 45 anos com síndrome antifosfolipídica —um problema do sistema imunológico— permaneceu internado com covid-19 durante cinco meses num hospital de Boston, até que morreu. Sua equipe médica detectou na época “uma evolução acelerada do vírus”, com a aparição das mutações Y144-, T478K, E484A e N501Y. As quatro também estão na ômicron.