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    porto velho, sexta-feira 22 de agosto de 2025

Insegurança Jurídica: Por Que as Regras do Jogo Mudam Tanto no Brasil e Como Isso Afeta Sua Vida?


Por Dr. Fadrício Santos

22/08/2025 17:52:40 - Atualizado

Imagine que você está no meio de um jogo de tabuleiro e, de repente, alguém muda as regras. Uma jogada que era permitida agora é proibida. Um caminho que levava à vitória agora leva a uma penalidade. Frustrante, não é? Pois bem, é exatamente essa a sensação que muitos brasileiros têm em relação às leis e à Justiça: a de que as regras do jogo podem mudar a qualquer momento.

Esse fenômeno tem um nome: insegurança jurídica. E ele não afeta apenas grandes empresas ou políticos; ele tem um impacto direto no seu dia a dia, nas suas finanças, no seu trabalho e nos seus direitos. Vamos entender por que isso acontece e quais as consequências para todos nós.

Por Que as Regras São Tão Complicadas? As Causas da Insegurança

A instabilidade não surge do nada. Ela é alimentada por uma combinação de fatores que tornam nosso sistema jurídico um verdadeiro labirinto.

A Montanha de Leis: O Brasil é campeão em criar leis. Todos os dias, novas regras, decretos e portarias são publicados. O problema é que muitas dessas normas são complexas, mal redigidas e, pior, contraditórias entre si. Tentar seguir tudo à risca é como tentar montar um quebra-cabeça em que as peças não se encaixam e novas peças são adicionadas a todo instante.

A Dança das Cadeiras nos Tribunais: Você entra com um processo na Justiça acreditando que a interpretação da lei é "X", porque os tribunais vêm decidindo assim há anos. No entanto, no meio do caminho, os juízes mudam de ideia e passam a entender que a interpretação correta é "Y". Essa mudança de rota, chamada de instabilidade da jurisprudência, é uma das maiores causas de insegurança.

A Palavra Final... que às Vezes não é Final: Em tese, quando um processo chega ao fim e não há mais possibilidade de recurso, a decisão se torna "coisa julgada", ou seja, é a palavra final. Contudo, na prática, vemos situações em que essa "palavra final" é relativizada ou rediscutida, gerando uma enorme instabilidade. É como se, após o apito final do juiz, o jogo pudesse ser reiniciado.

O Efeito Dominó: Como a Incerteza Jurídica Impacta a Sua Vida

Você pode pensar que isso é "papo de advogado", mas as consequências são bem reais e práticas:

Para o seu bolso e seus planos: A insegurança afeta diretamente o ambiente de negócios. Empresários pensam duas vezes antes de investir, contratar ou expandir, pois não sabem se as regras tributárias ou trabalhistas serão as mesmas no ano seguinte. Menos investimento significa menos empregos e menor crescimento econômico para o país.

Para seus direitos como cidadão: Imagine financiar um imóvel em 30 anos com base em um contrato e, no meio do caminho, uma nova interpretação judicial mudar as regras de juros ou correção. Ou ainda, imagine ter um direito reconhecido pela Justiça, mas a demora e a instabilidade tornarem essa vitória inútil.

Para a advocacia e o acesso à Justiça: Para os advogados, o cenário é de constante apreensão. Como aconselhar um cliente com firmeza se o entendimento dos tribunais pode virar de cabeça para baixo? Essa incerteza encarece os serviços jurídicos e torna o acesso à Justiça um caminho ainda mais tortuoso para o cidadão comum.

Os Guardiões das Regras: O Que a OAB e o STF Estão Fazendo?

Diante desse cenário, duas instituições são fundamentais no debate: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

O Papel da OAB: A OAB funciona como uma espécie de "advogada da sociedade". Sua missão, definida em lei, é defender a Constituição, a ordem jurídica e o Estado de Direito. Ela faz isso de várias formas: questionando leis que considera inconstitucionais, participando de julgamentos importantes para levar a perspectiva do cidadão e da advocacia, e defendendo as prerrogativas dos advogados para que eles possam defender plenamente seus clientes.

O STF: Vilão ou Bombeiro? O STF está no centro do furacão. Muitos o acusam de ser um dos causadores da insegurança, por vezes mudando entendimentos consolidados. No entanto, o Supremo também tem atuado como um "bombeiro" para apagar incêndios jurídicos, principalmente por meio de uma ferramenta chamada modulação dos efeitos.

Funciona assim: quando o STF declara que uma lei é inconstitucional, a regra geral é que essa decisão valha para o passado (efeito retroativo), anulando tudo o que foi feito com base naquela lei. Isso poderia gerar o caos. A modulação permite que o STF diga: "Ok, essa lei está errada, mas para não prejudicar todo mundo que agiu de boa-fé, a nossa decisão só vai valer a partir de agora".

Vimos isso na prática em casos importantes. Em um julgamento sobre a forma de cálculo de uma contribuição previdenciária, o STF mudou um entendimento anterior, mas aplicou a modulação para que a nova regra só valesse dali para frente, protegendo as empresas que seguiram a regra antiga (STF - RE: 1072485 PR). Em outra decisão, sobre regras para promoção de membros do Ministério Público, a Corte também usou essa "válvula de escape" para proteger a segurança jurídica e a confiança de quem seguiu a lei por mais de 20 anos (STF - ADI: 3194 RS).

O Terremoto Político: Como a Briga em Brasília Abala as Fundações do Direito

Os problemas do Direito não acontecem em uma bolha. Eles são, em grande parte, um sintoma de uma doença mais profunda: a polarização política radical. Quando a política se transforma em um campo de batalha onde o objetivo não é mais construir consensos, mas aniquilar o adversário, as instituições que deveriam garantir a estabilidade são as primeiras a sofrer.

A Justiça no Meio do Fogo Cruzado: Em um ambiente polarizado, toda decisão judicial importante é interpretada não por seu mérito técnico, mas como uma vitória ou derrota de um lado político. O Judiciário, especialmente o STF, é constantemente pressionado e atacado, seja pela direita ou pela esquerda. Isso corrói a percepção de neutralidade da Justiça, que passa a ser vista como mais um jogador no campo político, e não como o árbitro.

A Estabilidade das Ruas e das Instituições: Essa guerra institucional transborda para a sociedade. A desconfiança generalizada nos Poderes alimenta a agitação social e o sentimento de que "as regras não valem para todos". A paz nas ruas depende diretamente da percepção de que as instituições são estáveis, justas e previsíveis. Quando o Presidente, o Congresso e o Judiciário vivem em conflito aberto, a mensagem que chega ao cidadão é a de que o caos é a norma. Para que as leis sejam respeitadas, é preciso que haja um mínimo de harmonia e respeito entre aqueles que as criam, aplicam e julgam. A estabilidade política não é um luxo, é o alicerce da segurança jurídica.

Ponto de Tensão: O STF Julgando Cidadãos Sem Foro Privilegiado

Recentemente, um novo capítulo dessa história tem gerado um debate acalorado: o STF julgando pessoas que, em tese, não deveriam ser julgadas por ele.

A regra básica é clara: o STF julga um grupo seleto de autoridades, como o Presidente da República, ministros e parlamentares. É o chamado foro privilegiado. Um cidadão comum, sem esse privilégio, deveria ser julgado por um juiz de primeira instância. Mas então, por que estamos vendo pessoas sem foro sendo julgadas diretamente pela mais alta Corte do país, como nos casos ligados aos atos de 8 de janeiro?

Avanço ou Retrocesso? As duas faces da moeda:

A Crítica (Visão de Retrocesso): Para muitos juristas, essa é uma perigosa violação de direitos. O principal argumento é a ofensa ao princípio do juiz natural, que garante a todo cidadão o direito de ser julgado por um tribunal previamente determinado por lei. Ser "puxado" para o STF seria como ser retirado do juiz do seu bairro para ser julgado diretamente pelo "rei no castelo". Além disso, quem é julgado diretamente pelo STF perde as várias chances de recurso que teria em um processo comum. É como disputar uma final de campeonato sem ter jogado as quartas de final ou a semifinal. A defesa fica com menos chances de reverter uma condenação, o que é visto como um grave prejuízo.

A Justificativa (Visão de Avanço): O STF, por sua vez, argumenta que a medida é excepcional para uma situação excepcional. A lógica é que os crimes foram cometidos em grupo (conexão), envolvendo pessoas com e sem foro privilegiado, e tinham como alvo a própria democracia e suas instituições. Para evitar decisões conflitantes em várias instâncias e garantir uma resposta rápida e unificada a um ataque coordenado, a Corte atraiu para si a responsabilidade de julgar todos os envolvidos. A justificativa é que, para defender o todo (a democracia), foi preciso tomar uma medida drástica e centralizadora.

Este é, sem dúvida, um dos pontos mais sensíveis da segurança jurídica hoje. Ele coloca em rota de colisão dois valores fundamentais: a proteção dos direitos individuais de cada réu versus a necessidade de uma defesa institucional robusta do Estado Democrático de Direito.

Conclusão: Deixando de Jogar com a Sorte

A jornada pelo cenário jurídico brasileiro nos mostra que a insegurança é como uma areia movediça sob os pés da nação. Ela não tem um único vilão, mas é alimentada por um ciclo vicioso: leis confusas geram decisões instáveis, que por sua vez, são inflamadas pela polarização política, criando debates acalorados sobre os limites do poder.

A construção de um terreno firme, portanto, não é uma missão apenas para advogados e juízes em Brasília. É uma tarefa coletiva. Exige um Congresso que preze pela clareza em vez da quantidade de leis. Exige um Judiciário que entenda que previsibilidade não é teimosia, mas sim um pilar da confiança. E exige de nós, cidadãos, a consciência de que um sistema justo começa com regras estáveis e um ambiente político minimamente saudável.

Afinal, o que está em jogo é a nossa capacidade de transformar planos em realidade. Um país onde o futuro depende da interpretação do dia não convida ao investimento, não protege o cidadão e não inspira confiança. Ele apenas nos convida a continuar jogando com a sorte.

E já passou da hora de o Brasil parar de apostar.

Dr. Fadrício Santos – Colunista

Advogado criminalista com sólida reputação, especialista em Direito Penal e Processo Penal, com mais de 10 anos de atuação em todo o Brasil.

Atualmente exerce a função de Corregedor-Geral da Assembleia Legislativa, tendo também atuado como Advogado-Geral da mesma instituição. No sistema OAB, ocupou cargos de grande relevância:

Presidente da Comissão de Advogados Criminalistas

Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários

Presidente da Comissão de Fiscalização do Exercício Profissional

Diretor Executivo da Comissão de Prerrogativas

Conselheiro do CONEPOD – Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas

Sua trajetória também inclui forte atuação no setor privado, tendo sido gestor comercial da multinacional TOTVS nos estados da Região Norte — maior empresa de software de gestão do Brasil e uma das principais da América Latina — além de experiência em telecomunicações.

É também coordenador de campanhas político-partidárias e institucionais, unindo visão estratégica, articulação e profundo conhecimento do cenário institucional.

Nesta coluna semanal, o Dr. Fadrício trará reflexões com clareza, profundidade e coragem sobre os principais temas da justiça criminal, do Estado Democrático de Direito e do fortalecimento das instituições, com um olhar técnico, crítico e comprometido com o interesse público.


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