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porto velho, sexta-feira 5 de setembro de 2025
"Vivemos em uma época de terror e intimidação, e a resposta, da qual a arte faz parte, é o amor." — Guillermo del Toro
Em tempos em que o ruído se sobrepõe ao diálogo e o espetáculo substitui o conteúdo, a pergunta de Del Toro — "o que é ser humano?" — ressoa em meio ao frenesi das redes, das manchetes e das narrativas polarizadas. No Brasil, essa inquietação é urgente. A política virou um reality show, onde o que importa é a performance, não a solução. Deputados são influencers, ministros viram memes. O adversário político não é mais alguém com ideias diferentes, mas um inimigo moral. É a desumanização do outro, a bipolaridade do "nós" contra "eles".
O Diretor de cinema Guillermo del Toro finalmente realizou seu sonho de infância: adaptar Frankenstein com a escala e a densidade emocional que a história exige. O filme, aplaudido por 13 minutos no Festival de Veneza, não é apenas uma releitura do clássico de Mary Shelley — é um espelho. Nos obriga a encarar a criatura que criamos ou, pior, a criatura que nos tornamos. Del Toro nos lembra que a arte é parte da resposta. E talvez seja mesmo na arte — na literatura, no cinema, na música, na dança — que ainda encontramos espaços para respirar, para sentir, para lembrar que somos mais do que papéis sociais ou avatares digitais. Vamos conversar um pouco sobre isso?
Política como Reality Show
O Brasil vive uma grave investida contra o que foi a tentativa de construção democrática. A escuta virou ruído. A palavra virou arma. A política virou espetáculo. A educação virou palco de guerra ideológica. A ciência virou inimiga. A cultura virou ameaça. O pensamento virou subversão. A universidade virou trincheira. O professor virou alvo. O estudante virou inimigo. O saber virou perigo. O livro virou objeto suspeito. A escola virou campo de batalha. A sala de aula virou arena. O currículo virou disputa. A docência virou resistência.
Já escrevi aqui, antes, que o Brasil vive uma espécie de “efeito Frankenstein”. A criatura, rejeitada por seu criador, vagueia em busca de sentido, de afeto, de pertencimento. Mas o que encontra é medo, repulsa, violência. A metáfora é potente: criamos monstros e depois os abandonamos. A política, hoje, parece feita de pedaços costurados — ideias desconexas, discursos inflamados, promessas vazias. O resultado é uma criatura disforme, que assusta, mas também seduz. O espetáculo é grotesco, mas atrai audiência.
Del Toro nos lembra que seu novo Frankenstein não é sobre um cientista louco, mas sobre um criador que se arrepende. Talvez nos falte isso: olhar para os grupos que criamos, os silêncios que impusemos, os afetos que descartamos – e admitir que erramos. Permanecer humano, nesse contexto, é resistir à tentação de reduzir o outro a uma caricatura ou alguém que não deve ser responsabilizado pelos crimes que cometa. Mas como fazer isso quando o humano virou algoritmo? Quando a empatia é medida por engajamento e o amor é só mais uma hashtag?
Bolhas e o Silêncio das Diferenças
Eu sei. Já escrevi sobre isso, mas vamos novamente: As redes sociais, que prometiam conexão, nos empurraram para bolhas impermeáveis. O algoritmo nos alimenta com o que confirma nossas crenças e o contraditório vira ameaça. Vamos no particular: o grupo de WhatsApp virou o novo laboratório de Frankenstein, onde criamos subgrupos para excluir, silenciar com elegância e "apagar presenças" com emojis sorridentes.
O Brasil se fragmenta em microcosmos onde cada grupo acredita ser o único detentor da verdade. A bolha não é só ideológica. É afetiva. É moral. É estética. E dentro dela, tudo que desafia, incomoda ou exige; a escuta vira ruído. A criatura, hoje, é quem ousa divergir.
Empatia como mera vitrine?
Vivemos também a era da empatia performática. Campanhas emocionantes, hashtags solidárias, lágrimas em vídeos bem editados. Mas quando a câmera desliga, o que sobra? A lógica do entretenimento tomou conta da política. O que importa não é o argumento, mas o engajamento. Não é o conteúdo, mas o alcance. Não é o projeto, mas o post. Não é o debate, mas o embate. Não é o diálogo, mas o duelo. Não é a escuta, mas o grito. Não é o outro, mas o inimigo.
O sentimento geral é de que a política virou um campo de batalha simbólico, onde o que está em jogo não é a construção de um país, mas a destruição de um adversário. A democracia virou um jogo de aparências. A verdade virou narrativa. A mentira virou estratégia. A ética virou detalhe. A justiça virou espetáculo. A Constituição virou obstáculo. O povo virou massa de manobra. A dor virou estatística. A fome virou número. A morte virou dado.
Del Toro fala do amor como resposta. Amor não como sentimento romântico, mas como postura ética: a capacidade de enxergar o outro como legítimo, como alguém que merece cuidado, escuta e dignidade. Del Toro nos lembra que a arte também é uma parte da resposta amorosa. E talvez seja mesmo só na arte — no cinema, na música, na literatura — que ainda conseguimos respirar sem pedir desculpas por existir.
Fé como Ferramenta, Refúgio ou Resiliência?
Permanecer humano, hoje, é um ato de desobediência. É recusar a lógica da exclusão, da performance, da indiferença. É cultivar o amor como prática política, a escuta como gesto revolucionário, e a dúvida como sinal de inteligência.
A fé, que deveria ser espaço de transcendência e acolhimento, muitas vezes é usada como instrumento de controle. Igrejas viram palanques, pastores viram líderes políticos, e o sagrado é instrumentalizado para justificar exclusões. Mas há também, em meio a isso, comunidades que resistem, que praticam uma fé que liberta, que acolhe, que humaniza. Permanecer humano, nesse cenário, é resgatar a espiritualidade como espaço de encontro — não de imposição.
Permanecer humano é um ato de resistência resiliente, que se reinventa (a chuva de R´s, perdão!). É recusar a lógica da polarização, da performance, da indiferença. É cultivar o amor como prática política, a escuta como gesto revolucionário, e a dúvida como sinal de inteligência. É reconhecer a complexidade, a ambiguidade, o direito à dúvida. É entender que a verdade não é monopólio de ninguém, e que o diálogo é mais fértil que o embate.
Contexto Local.
Para mim, política e democracia são também uma arte — não no sentido ornamental, mas como expressão viva do humano em coletivo. Elas emergem do entrelaçamento de sentir, pensar, agir e imaginar, com a singularidade de cada um pulsando no agora. A política, tal qual a obra de Del Toro nos alerta, também virou espetáculo. E nesse palco, o Executivo (ou as reitorias) parece só precisar de votos — não de argumentos. A escuta virou ruído. A divergência, ameaça. E o humano, algoritmo.
Permanecer humano, então, é também reinventar a política como espaço de imperfeição legítima. É reconhecer que a democracia não se sustenta apenas em estruturas, mas em práticas afetivas, éticas e estéticas. É aceitar que o contraditório não é inimigo, mas convite. E ver que o pragmatismo excessivo (não a pragmática como fundamento), levou a crises irremediáveis, sendo “sal” na égide para “democracia excludente”.
Mas há um esgotamento em modelos que prometiam participação e escuta. Conselhos, câmaras, fóruns — espaços que deveriam ser de voz plural — hoje se tornam vitrines de impaciência e silenciamento. Não preciso estar ou mencionar o Congresso Nacional para perceber isso. Basta observar os Conselhos Superiores das Universidades, meu lócus cotidiano.
Um estudo publicado na revista Avaliação da SciELO mostra que há uma relação significativa entre a estrutura, composição e processos dos conselhos superiores e o desempenho das instituições públicas federais de ensino superior. Conselhos menores, com mais comitês vinculados e maior frequência de reuniões, tendem a estar associados a melhores resultados institucionais. Porém, o modo de gestão expressam a forma do executivo em lugar do legislativo com base na participação dos principais interessados.
No caso específico do que tenho convivido, ali, nos Conselhos, representantes das categorias acumulam funções e cargos, dirigentes confundem papéis, e muitas vezes deixam de representar para apenas ocupar. Ou representam para assegurar as vantagens possíveis, nem sempre tão claras. Há honrosas exceções, mas a regra deveria manter um interesse, porquanto necessário. Muitas vezes se tornam ambientes de silenciamento institucional, onde a representação se confunde com ocupação de cargos, e a impaciência substitui o diálogo. E o pragmatismo minoritário, mas justificado por “avanços”, tornam-se fatos e portanto, sem divergência. Você participa, acompanha ou se interessa pelo que está acontecendo nos Conselhos de sua Universidade?
Del Toro nos lembra que seu novo Frankenstein não é sobre um cientista louco, mas sobre um criador que se arrepende. Talvez nos falte isso: olhar para os grupos que criamos, os silêncios que impusemos, os afetos que descartamos – e admitir que erramos. Porque, no fim, talvez a pergunta não seja apenas “o que é ser humano?”, mas “como continuar sendo humano quando tudo nos empurra para o contrário?”. E a resposta, se existir, estará na coragem de fazer da política e a democracia uma arte: imperfeita, plural, e profundamente humana. Onde você está neste cenário?
Saiba mais?
Frankenstein. Novo filme de Del Toro. https://g1.globo.com/pop-arte/...;
“Democracia Excludente”. Percepção a partir da obra de Pedro Demo. https://www.perlego.com/book/4...;
UNIR no YouTube. www.youtube.com/@unir.rondonia (sobre os Conselhos Superiores)
Artigo (Vinicius Flausino). A relação entre estrutura, composição e processos dos conselhos superiores e o desempenho das instituições públicas federais de ensino superior brasileiras.