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    porto velho, sexta-feira 4 de julho de 2025

A morte banalizada: quando os mortos deixam de fazer falta

Afinal, o trabalho chama, as obrigações não esperam e, no dia seguinte, as redes sociais exigem um novo post — de preferência, alegre...


Arimar Souza de Sá

Publicada em: 04/07/2025 17:52:28 - Atualizado

CRÔNICA DE FIM DE SEMANA

A morte banalizada: quando os mortos deixam de fazer falta

Arimar Souza de Sá

Tenho notado, nos últimos anos em Porto Velho, que cada velório a que compareço para prestar tributo ao falecido(a) se tornou uma cena cada vez mais fria. A morte, antes vestida de luto e silêncio, hoje caminha quase despercebida, como uma sombra que poucos notam.

A impressão que tenho é de que ela entra abruptamente nos salões fúnebres e encontra um público contido, distante, quase ausente. Já não se vêem lágrimas pesadas de saudade. As mãos não tremem mais de dor, os olhos não se perdem em lembranças. Tudo parece breve, quase protocolar. Ninguém parece, de fato, chorar seus mortos.

Para muitos, o velório virou um compromisso a ser ticado na agenda. A presença se dá nos minutos finais, já com o caixão prestes a sair. Afinal, o trabalho chama, as obrigações não esperam e, no dia seguinte, as redes sociais exigem um novo post — de preferência, alegre.

Que mal lhe pergunte, meu leitor: onde nasceu tanta frieza?

Talvez a resposta esteja no ritmo brutal da vida moderna. Nunca fomos tão bombardeados por notícias, imagens de tragédias, corpos dilacerados, guerras, massacres. Tornamo-nos espectadores passivos de uma dor globalizada — e, como mecanismo de defesa, endurecemos. A emoção deu lugar à apatia.

Mas o problema vai além. Há uma espécie de anestesia afetiva tomando conta das relações. O imediatismo e a superficialidade das redes sociais substituíram os vínculos profundos por interações rápidas e performáticas. Como sentir falta de quem, em vida, já era invisível fora das telas? Como chorar por alguém que mal se conheceu, apesar de “amigo” no celular?

Triste, não é? Antigamente, a morte parava o tempo. Havia carpideiras, choros sinceros, mesas com cadeiras vazias que doíam. O luto era um ritual de dor compartilhada.

Hoje, a morte parece, para muitos, apenas uma pausa incômoda na correria da semana. Mal se fecha o caixão e já se retoma a rotina, como se o desaparecimento de alguém fosse só mais uma nota de rodapé — ainda que esse alguém tenha deixado um legado de amor e serviço.

Vivemos uma era estranha, na qual a morte virou estatística e a vida alheia perdeu valor. O falecimento do Papa Francisco exemplifica isso: noticiado como número, manchete repetida, post efêmero. E a maioria nem se comoveu. E era o Papa!

Acostumamo-nos à perda como se fosse parte do tráfego diário — incômoda, mas inevitável. “Todo mundo vai morrer um dia”, dizem. Vida que segue... Nessa convivência constante com tragédias, tornamo-nos frios, insensíveis ao grito silencioso da vida que se apaga. Cruz credo!

Mas o que aconteceu com o coração das pessoas? Por que os mortos já não fazem falta? O que se quebrou na alma coletiva?

Talvez, no meio da pressa, tenhamos perdido a delicadeza de sentir. Vivemos ocupados, escravos de agendas, conectados o tempo todo, fugindo do incômodo — inclusive do luto. Sentir dói, e ninguém mais quer sofrer. A saudade foi abafada por notificações. O silêncio foi soterrado por timelines. A lágrima virou sinal de fraqueza.

Mal comparando, os velórios hoje se assemelham a salas de embarque: olhares impacientes, celulares nas mãos, piadas fora de hora. Os mortos partem em meio à distração dos vivos. Mesmo os que deixaram rastros de amor e amizade logo viram fumaça, arquivo, silêncio. E, no dia seguinte, poucos se lembram — salvo os mais próximos.

Nesse cenário, a vida perdeu cor e importância. Tornou-se descartável para os insensíveis. Vive-se pela metade, vive-se para aparecer — mas não para marcar. E quem não vive com profundidade, talvez também não morra com significado. Será esse o pensamento dos apressadinhos?

É hora de fazermos nossa mea-culpa — eu, você, todos nós. Precisamos resgatar a memória, reaprender a sentir, a chorar, a parar e nos comover.

Chorar nossos mortos é reconhecer que fomos parte deles, ou por eles marcados. É oferecer o tributo da saudade, o altar da lembrança. É dizer, com lágrimas ou silêncio verdadeiro: “Você fará falta!”

Se não fizermos isso, continuaremos transformando nossos mortos em sombras passageiras e a vida humana em um suspiro raso, que mal se ouve — e, quando termina, não ecoa em lugar algum.

Se a morte já não nos assusta ou angustia, talvez seja porque a vida também deixou de nos emocionar.

E aí, lascou-se!

É tempo de reflexão.

Amém!


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