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    porto velho, segunda-feira 25 de novembro de 2024

Na garoa fina - Autoria de Emerson Castro ex-chefe da Casa Civil de RO


Emerson Castro

Publicada em: 12/06/2021 11:28:48 - Atualizado


A velha carregava uma sacola com legumes. Olhar profundo, cansado, da vida sob o sol.

A vida na roça era dura.

Pele curtida. Rugas profundas.

Levemente encurvada.

Atravessava a rua da feira pro Acougue.

Na calçada do outro lado a menina brincava

Boneca de trapo nas mãos com cabelos coloridos como uma “Emília” de Monteiro Lobato.

A menina arrumava o cabelo da boneca, falando algo pra ela, como se fosse uma mãe falando com a filha.

A velha no outro lado da rua esperava um ônibus passar.

Sabia que já não era mais rápida pra se arriscar. Em dúvida, melhor esperar o ônibus passar.

Mas a menina, olhando pra boneca de pano não via.

Nem sabia da existência do ônibus.

Só brincava e falava com a boneca

E foi brincando que colocou o pé na rua…

Desceu a calçada sorrindo, olhos brilhando, faiscando.

Alheia ao comércio que a cercava.

Desconectada do mundo, concentrada na filha imaginária em seus braços.

Nem pro aceno da velha no outro lado da rua deu bola.

Menos atenção deu pro ônibus que se aproximava.

No ônibus, o motorista falava ao celular.

Esposa esperava em casa. Era manhã de sábado

Uma semana viajando, mal via a hora de voltar pra família.

Ele era homem bom. Amava a esposa, que grávida o aguardava.

Olhou pra trás , pra um passageiro que falou algo.

- A menina…!

O motorista se virou pra trás pra ver o que o passageiro gritava, ainda estava com o celular na mão, enquanto uma garotinha atravessava a rua com a boneca na mão.

Ela viu que a garotinha não ia parar. Em um milésimo de segundos a velha lembrou da filha (já adulta) quando era pequena.

Lembrou de como se desligava de tudo quando brincava no quintal de casa. Lembrou que não adiantava falar com ela, pois ela não ouvia, quando brincava.

A velha esqueceu da dor nas pernas. Largou a sacola de compras. Lançou-se à frente, pra tirar a menina da rua, mas parecia haver uma enorme distância entre elas.

Era velha.

Não tinha mais a mesma saúde, nem velocidade da juventude.

A boca se retesou numa tentativa de grito. As rugas no rosto se esticaram e por um instante, sumiram.

O grito não saiu. A garganta era rouca. Seca pelo pânico.

A menina deu mais alguns passos.

A boneca tinha nome: Maria.

Era com a Maria que ela falava.

Não havia mais ninguém no mundo, além dela e da Maria.

Ela parou de andar no meio da rua e abraçou a Maria.

Beijou a Maria.

Na sua imaginação, Maria falava com ela.

No ônibus, o motorista entendeu o que o passageiro falava.

Virou-se pra frente.

O celular caiu da mão.

Viu a menina.

Viu a velha.

Estava rápido demais…

Pisou fundo no freio.

A velha sentiu o lampejo da vida.

Era sozinha há anos.

A filha não a visitava.

Era viúva.

Estava cansada

Tinha dor nos ossos.

Vivia pedindo a Deus que desse descanso a ela.

Já tinha sido bastante.

Queria descansar.

Mas naquele momento esqueceu da dor. Da idade. Da solidão.

Apertou o passo.

Chegou até a menina e a abraçou.

Não teria tempo de sair da frente do ônibus…

A menina beijava a boneca.

De repente alguém a abraçou com força.

Braços finos com Pele flácida cercaram seu corpo.

Sentiu a umidade de tecido levemente molhado pela garoa.

Ouviu um guincho que pareciam berro de porcos.

No ônibus o motorista retesava os braços puxando forte o freio de mão.

O pé direito fundo no pedal.

Os pneus cantaram no asfalto molhado pela garoa.

A alma toda clamando por parar aquele Titã de dois andares com passageiros.

Fechou os olhos em desespero.

Até que…

Milagrosamente , a centímetros das duas figuras abraçadas, o ônibus parou.

Ele abriu os olhos.

Viu as duas abraçadas.

Desesperado, coração ribombando, abriu a porta do ônibus e como um raio saiu em direção as duas.

E foi assim, sob a garoa fina que ele as abracou.

Seu corpo tinha o dobro do tamanho das duas.

Seus braços fortes as envolviam, enquanto lágrimas escorriam pelo rosto.

Peito saltava no compasso do coração acelerado.

Beijou a cabeça das duas.

Ele era cristão.

Sabia que o ônibus não teria condições normais de parar.

Em soluços, agradeceu.

A velha , pela primeira vez em anos, recebia um abraço.

A menina, pela primeira vez na vida, sentia a presença protetora de um homem. O pai abandonara a mãe antes de nascer.

O motorista, pela 1ª vez em sua vida adulta, sentia o que era ser pai protetor e filho. A mãe tinha morrido quando ainda era criança.

E foi assim, sob a garoa fina, que as pessoas que andavam naquele lugar, naquele sábado foram testemunhas de um milagre.

Não apenas pela tragédia que tinha sido evitada.

Mas pela relação de 3 vidas que nunca mais perderiam contato.

Bem ali.

Na garoa fina que caía, inexplicavelmente, em pleno período de seca…

Havia mais alguém abraçando os três…

AUTOR:  Emerson Castro 
 Ex-chefe da casa civil do Governo Confúcio Moura


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