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porto velho, segunda-feira 25 de novembro de 2024
Pedalando, em minha cidade de Porto Velho, de madrugada com minha esposa, vi elementos que inspiraram essa pequena estória.
E quando ela vem na cabeça, meus amigos, tenho que escrever.
A maioria delas não publico em redes sociais.
Deixo guardadas pra, algum dia, organizar em um livro.
Mas essa resolvi partilhar.
Do jeito que veio, escrevi.
Quase como o parto, de um bebê do qual não fiz ultrassom, Não sei o sexo nem tenho nome ainda.
Nessa hora Viro mero instrumento.
Não sei direito como surgem na minha imaginação, mas tento ser fiel a estória que flui.
Vai sendo montada, como um "Lego", com o qual brincamos sem saber no que vai dar.
Aí está ela pra vocês.
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A lágrima do ypê
Naquela casinha, meu sinhô, próxima a rodovia, logo depois da curva da Juçara, morava um menininha linda.
Pequenina, a mãe a acordava cedinho pela manhã pra ir a aula.
- Vai ser dotôra, minha filha. Tem que estudar.
Banho tomado, sacola plástica improvisando uma mochila, roupinha simples, mas bem lavada e passada no ferro a carvão.
Ia ela, segurando a mão da mãe, atravessar a rodovia, pra escolinha pública, quase em frente à casa simples da família.
Ano após ano, a menina seguiu essa rotina.
Após a aula, em casa, ajudava na rotina do lar.
Varria o chão de barro, arrumava a cozinha. Deixava tudo bem asseado. Ganhou responsabilidade.
Aniversário de 10 anos, pediu a mãe pra ir sozinha pra aula.
Desconfiada, mae negou.
A menina insistiu.
- mas "mainha", a escola é logo ali!
Convenceu a mãe, que precisava mesmo sair mais cedo pra roça, ajudar o marido e levar a filha pra escola a atrasava.
- Tá bom filhinha. Pode ir sozinha.
Mas nada de atrasar, nem na ida, nem na volta!
Assim fez a menina, meu sinhô.
Todo dia , porém, ela acrescentou uma coisa na rotina.
Ao pé da rodovia, sentava uns minutos a sombra do ipê Branco que florava naqueles meses de secura no sertão.
Eu , passava por ela todos os dias, a caminho do trabalho no roçado do seu Zé Torres.
Dava meu bom dia, pra menina sentada à sombra do Ipê. Vi que ela estava sempre com um caderninho, desenhando os passarinhos na árvores e as flores que perfumavam o ar.
Ela sempre sorrindo, me respondia, com uma alegria, que só o sinhô vendo.
Certa manhã, (isso eu só soube depois) ela acordou animada, porque era aniversário da mãe.
Levou uma fatia do bolo de macaxeira que tinha feito na noite anterior, para a professora.
Na aula, a professora notou que a menininha, sempre comportada, estava inquieta .
Lá pelas tantas a menina perguntou:
- professora, Posso sair mais cedo hoje? É aniversário de mainha e quero arrumar o almoço pra ela de surpresa!
A professora deixou, claro, ao ver o gesto de carinho da aluna, sempre educada.
E lá se foi a menininha, animada, assobiando o canto dos passarinhos que ouvia ao pé do Ipê.
Assobiava pardal, assobiava sanhaçu, e assobiava o seu predileto, o que mais desenhava pelas manhãs, o bem-te-vi.
Caminhava veloz, displicente. Abraçada a sua Sacola plástica com alguns livros, um caderno que ganhou da professora dois lápis pela metade, uma meia dúzia de lápis de cor que eram usados para os seus desenhos.
Caminhava desatenta, já pensando nas flores que colheria pra arrumar a mesa do almoço dos pais e no restante do bolo de macaxeira que seria seu presente pra mae que trabalhava na roça.
Caminhava, como se flutuasse, sentindo o ardor gostoso do sol na pele do rosto e nos lábios que assobiavam passarinhos
E foi assim, sem se atentar, que atravessou a rodovia.
Da janela da sala de aula, a professora olhava, se alegrando por ela.
mas a professora não estava desatenta.
Ela viu a menina se aproximando da rodovia sem diminuir o passo, nem olhar pros lados.
Notou que a aluna só olhava pro Ipê do outro lado da rodovia.
Não olhava pro caminhão de cana, que vinha carregado e em alta velocidade.
A menina parecia hipnotizada, como toda menininha de 10 anos, cujo mundo deixa de existir, quando presta atenção em uma coisa.
A professora, em horror, saiu da sala correndo.
Passou pela porta da escola como se sua vida estivesse em risco.
De certa forma estava.
Qual professora , que realmente ama o ofício, não adota de certa forma, seus alunos.
Gritou, mas já era tarde demais.
A menininha, ainda chegou a parar, no meio da rodovia, quando ouviu a professora gritando.
O motorista do caminhão, que tinha perdido os freios, ainda tentou desviar, deu uma guinada pro lado, mas a traseira tombou.
Foi quando então, em uma fração de segundos, a menininha viu... não o caminhão que tombava sobre seu corpo frágil , nem a professora em absoluto terror, com a mão crispada na altura do coração , como a segurar o órgão que tentava saltar do peito, mas o bem-te-vi, que alçava voo do galho do Ipê florido...
Então, sem dor, nem assombro, sua consciência se desgarrou do corpo pequenino.
A sacola se rasgou. Os lápis de cor foram quebrados ante o peso da carga de cana que quedou sobre eles.
No impacto, o caderno de desenho se rasgou, uma folha foi lançada ao ar e foi, mansamente, pousar ao pé da árvore, que era amiga e confidente dela. Da pequena criança doce.
A consciência da menina então, voou com o bem-te-vi.
Rumo ao sol, que acarinhava, há pouco, sua pele...
Todos os dias, meu sinhô, passo pelo ipê, triste.
Sinto falta do "Bom dia" que ganhava dela.
Sempre ali, sentada, fazendo seus desenhos.
Mas vou dizer uma coisa, que nunca disse pra ninguém, pra não acharem que estou caducando.
Mesmo hoje, um ano depois, quando venho pro trabalho, logo pela manhã cedo, passo pelo lugar que ela ficava.
Juro, de pé junto, que hoje, quando parei na sombra da árvore, senti uma gota de orvalho caindo das flores do Ipê, como se estivessem chorando. Olhei pra baixo e achei, uma folha de caderno e nela desenhado, um ipê todo florido, em seus galhos vários passarinhos.
No desenho estava também ela, sentada e um lindo sol a brilhar.
Meu sinhô, ela está lá!
A menininha não morreu!
Como explicar orvalho nessa época de seca no nosso sertão?
O desenho, meu sinhô, deixei, ao pé do Ipê, pro bem-te-vi, ver e sentir vontade de cantar.
Tenho certeza que ela vai gostar de encontrar com seus pássaros, no Ipê, seu amigo...
O autor, Emerson Castro, foi chefe da Casa Civil do Governo de Rondônia.