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porto velho, terça-feira 10 de dezembro de 2024
BRASIL - Em "Urucum", seu novo álbum, Karol Conka é também Karoline, Mamacita e Jaque Patombá. "A gente começou a brincar com essas personas que compõem a minha personalidade", diz a rapper sobre o trabalho com o produtor RDD, baiano que atua no grupo Àttooxxá. "Mesmo na sofrência, consegui tirar uma onda, mas isso é porque eu estou fazendo terapia."
O terceiro álbum de Conka marca uma ruptura em sua carreira. Apesar de buscar temperos brasileiros na sonoridade, como em sua estreia, "Batuk Freak", de 2013, ela agora acrescenta mais camadas à personalidade combativa que a alçou à fama. E, principalmente, o novo disco retrata o processo de busca de paz interior depois de ela se tornar por algum momento a mulher mais odiada do Brasil, eliminada do Big Brother Brasil do ano passado com 99,17% de rejeição –maior da história do programa.
A Jaque Patombá, por exemplo, é a personalidade de Conka que acumulou ódio do público no reality show –apelido retirado da letra de seu maior hit, "Tombei". "Isso é uma coisa curiosa, foi a Karoline quem escreveu a música 'Calma' para a Jaque Patombá", ela diz, citando suas novas músicas. "E foi a Jaque que escreveu a 'Cê Não Pode', uma mensagem para um monstro chamado cancelamento."
No álbum, essas duas músicas são escaladas em sequência, uma depois da outra, justamente opondo esses dois sentimentos da compositora. "Cê Não Pode" é um trap pesado, com triângulo, berimbau e batuques, em que ela diz que "comigo é tudo na verdade", "eu sou foda, pode admitir, tem que vaiar e quem vai aplaudir" e "comigo você não pode".
"Calma" tem uma levada arrastada e Conka pede tranquilidade "que a vida está um caos" e toma um banho de rio e um suco de cupuaçu. "É um processo natural", ela canta.
Esse tipo de diálogo interno é o que guia "Urucum". "Conforme a gente ia brincando com essas personas, eu ia entendendo que isso é algo natural do ser humano, que todos nós temos. Só que no meu caso elas têm nome, o público ajudou a nomear porque eu estava no reality, com exposição.
Todo mundo tem um lado Jaque Patombá, um lado Karoline, que é mais de boa, um lado Karol Conka, que é poderosa. A Mamacita já não tem muita paciência. Eu pensava 'que bom que tenho sanidade, oportunidade de cuidar da minha saúde mental e trazer isso para a música'."
"Se Sai", com uma levada que remete à música jamaicana, é uma canção que foi escrita pela persona Mamacita –outro apelido que vem de "Tombei". "Quem nunca erra sempre está por cima, e quem está por cima finge que não erra. E os que estão por cima, sempre tão por cima, uma hora erram", ela reflete sobre a condição do artista, e também sobre si mesma, na letra.
"Esse álbum é diferente dos outros. Ele é mais intenso, profundo e maduro. Foi um processo de autoconhecimento onde eu entendi que dá para continuar sendo combativa, eu apenas aprendi a usar novas ferramentas de combater. Como reagir numa situação em que eu me sinta atacada ou fragilizada? Só é possível chegar a essas novas ferramentas depois de ter feito as pazes com a vulnerabilidade no processo criativo deste álbum, conforme eu ia cantando."
É um disco que surgiu da dor –ou, como diz Conka, é "enxergar o ouro na vulnerabilidade". "Acho que se não fosse nesse momento eu não teria conseguido fazer esse álbum, porque o processo criativo foi como uma terapia para mim. Então, enquanto eu sentia toda aquela turbulência, resolvi mergulhar naquilo que sempre me fez me sentir mais leve e aliviada, que é a música."
Musicalmente, "Urucum" se conecta mais com "Batuk Freak", álbum importante para a música nacional, que fez barulho dentro e fora do país quando foi lançado. Além das letras e da postura de Conka, era um disco que trazia samples de música brasileira, timbres e levadas que o faziam soar como um álbum de rap diferente de tudo o que estava sendo feito.
"Urucum" é uma espécie de retomada dessa ideia, só que agora em uma nova estética, a partir da miscelânea de influências estéticas que compõem o universo do produtor Rafael Dias, o RDD. Ele viaja por batidas e arranjos eletrônicos que se somam a graves dos mais variados, ambientações de R&B e ritmos da Bahia e de toda a música afro-diaspórica.
"As referências que a gente tem nesse álbum são todas intuitivas. Não falamos 'vamos fazer isso porque tem nessa música que eu gosto'. São coisas que a gente guarda na nossa memória afetiva e musical, e fomos botando para fora", ela fala, dizendo que tem um carinho pela música baiana que vem da influência da avó, que nasceu no estado.
Mas as ligações entre o novo e o primeiro álbum de Conka vão além de questões conceituais. "Não foi fácil produzir aquele álbum, e acredito que as dificuldades por trás de cada um são o ouro para que ele seja uma coisa atemporal", ela diz, citando os problemas com o produtor Nave, renomado no rap nacional, que foram expostos no documentário "A Vida Depois do Tombo" –na época do filme da Globoplay, no ano passado, "Batuk Freak" chegou a sumir do streaming, em uma briga judicial que se arrasta até hoje.
"Quando lancei o 'Batuk Freak', eu pensava 'meu deus, todo mundo acha lindo e legal, mas ninguém sabe a história dolorosa por trás desta faixa, deste momento'. Ali eu aprendi que as pessoas não precisam sentir aquela dor, só o ouro que saiu da dor, o resultado daquilo. E com 'Urucum' foi assim. Eu pensava, 'nossa, mas o álbum está calmo, não tem aquele peso'. Mas o Rafa falava que não, ele já tinha um peso. Esse álbum me trouxe para o caminho da cura e da cicatrização."
Entre "Batuk Freak" e "Urucum", Conka estourou com o trap "Tombei", de 2014, e depois começou a produzir o álbum "Ambulante" com o duo eletrônico Tropkillaz, que assinou o hit. Mas devido a divergências pessoais, ela acabou abandonado o projeto e refazendo o trabalho com o produtor e amigo Boss in Drama –e a obra, mais inclinada à música pop, acabou sendo lançada apenas em 2019.
Ela conta que a demora acabou atrapalhando sua carreira, mas que não tem mágoas do segundo disco. "Naquela época eu estava em ascensão, o público queria um álbum, mas rolaram divergências nos bastidores. Acabei produzindo com o Boss in Drama, um disco feito na minha casa, num clima de amigos. Foi uma experiência especial, porque eu achava que tinham músicas que não combinavam comigo, mas ele mostrou que sim. Isso aconteceu com 'Saudade', que é a favorita do meu público nesse álbum. E 'Urucum' é uma ruptura, o início de uma nova era."
Sobre o processo de rever cenas de sua passagem pelo BBB para "A Vida Depois do Tombo", ela diz que foi uma espécie de "tortura psicológica", mas hoje Conka se diz grata pela oportunidade de participar do reality. Isso porque foi só graças à experiência no programa que ela conseguiu passar por esse processo de autoconhecimento –e, em última análise, escrever em duas semanas o que veio a ser "Urucum".
"A experiência me trouxe de presente essa consciência de hoje, o álbum e uma leveza que eu não teria não fosse isso. Sou grata até pelo apedrejamento que recebi, pelas mensagens de carinho e de puxão de orelha. Não sou grata pelo racismo que recebi –isso não sou obrigada. Mas sou grata pela sanidade de entender o que aconteceu. O país inteiro me chamando de louca, como se eles também não fossem. Cheguei na doutora perguntando se eu era tudo isso que estavam falando na internet. Pedi exames para saber se tinha algo. Me descobri mais humana e me cobro menos."
E a persona que se impõe nesse novo momento da rapper é a Karoline, a que mais ficou escondida na obra dela até agora.
"A Karol Conka nasceu em mim através das adversidades da vida. Ela é mais contundente. Mas a Karoline acabou ficando num lugarzinho escuro, em que eu fui vivendo só a Karol Conka –que daqui a pouco virou Mamacita, e, no reality, a Jaque Patombá. Aí eu pensei 'se a Conka salvou a Karoline –que era tão triste por não ser ouvida, não se fazer entender, e só conseguiu através da música–, chegou a hora da Karoline salvar essa Mamacita, essa língua de chicote da Patombá."