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porto velho, sexta-feira 28 de novembro de 2025

No coração do Direito de Família brasileiro, sobrevive um fantasma do passado: o parágrafo único do artigo 1.708 do Código Civil. Este dispositivo, que permite a extinção do direito a alimentos em caso de “procedimento indigno” do credor, é uma cicatriz do moralismo patriarcal que o Brasil moderno luta para superar. Embora presente no Código de 2002, sua essência remonta a uma época em que o valor da mulher estava atrelado à sua conduta sexual, e sua subsistência, a um prêmio por sua fidelidade.
Impõe-se reconhecer, de forma inequívoca, que ainda subsiste no ordenamento brasileiro uma norma materialmente inconstitucional, frontalmente incompatível com os alicerces da República.
O principal pilar da Constituição Federal é a dignidade da pessoa humana. A pensão alimentícia não é uma recompensa por bom comportamento; é o instrumento jurídico que garante o mínimo existencial, a subsistência. Subordinar o direito de se alimentar uma necessidade biológica fundamental a um julgamento sobre a vida íntima e afetiva de um indivíduo é aviltante.
Transforma-se a vida privada em critério patrimonial, permitindo que o Estado, por via judicial, puna uma falha conjugal com a mais severa das penas: a fome. A esfera alimentar não pode ser um tribunal moral. Alimentos são sobre necessidade e possibilidade, não sobre culpa ou castigo.
Historicamente e estatisticamente, quem mais sofre com essa regra? As mulheres. A norma foi concebida sob um olhar masculino, numa época em que a elaboração legislativa e doutrinária era quase exclusivamente dominada por homens. Ela reflete uma sociedade onde se esperava que a mulher se dedicasse ao lar e aos filhos, abdicando de sua carreira e independência financeira.
Ainda hoje, a maior parte dos credores de alimentos entre ex-cônjuges são mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica, muitas vezes como resultado direto dessa divisão de papéis. Punir a infidelidade da mulher com a perda de alimentos é, portanto, uma dupla penalização: primeiro, pela estrutura social que a tornou dependente; segundo, por uma escolha em sua vida íntima. Isso fere de morte o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, e art. 226, § 5º, da CF), perpetuando uma discriminação de gênero inaceitável.
O próprio sistema jurídico já evoluiu. A jurisprudência constitucional e o pensamento moderno abandonaram a investigação da culpa em temas muito mais sensíveis:
Se a moralidade conjugal foi afastada de decisões que definem o futuro dos filhos e a divisão de uma vida inteira de patrimônio, por que ela persistiria justamente no núcleo mais essencial da proteção familiar: a garantia de sobrevivência? Manter o art. 1.708, parágrafo único, é uma contradição lógica e um retrocesso sistêmico.
O parágrafo único do art. 1.708 é um entulho autoritário em nosso ordenamento jurídico. Ele é materialmente inconstitucional por violar a dignidade da pessoa humana, a igualdade de gênero, a proporcionalidade e a própria natureza solidária dos alimentos.
O Direito de Família contemporâneo se funda no afeto, no cuidado e na responsabilidade, e não em punições morais. Cabe ao Poder Judiciário, em seu papel de guardião da Constituição, reconhecer essa incompatibilidade e declarar a não recepção do dispositivo, garantindo que a sobrevivência de uma pessoa jamais seja usada como moeda de troca por sua fidelidade.
A dignidade é fundamento, não concessão.

Louise Haufes, é advogada militante a 20 anos. Sócia-fundadora do escritório Haufes & Oliveira Neto Advogados e autora do livro “Ética na Advocacia: O Que Ninguém Te Conta