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    porto velho, domingo 24 de novembro de 2024

Entretenimento seguro para mulheres é dever do mercado conforme Lei 14.786/2023

Proprietários de casas noturnas e boates, bem como os empreendedores de espetáculos musicais e shows...


CONJUR

Publicada em: 08/01/2024 09:23:22 - Atualizado

BRASIL: A partir de 28 de junho de 2024, todos os estabelecimentos comerciais e eventos destinados ao entretenimento, onde sejam disponibilizadas bebidas alcoólicas, estarão obrigados à adoção do Protocolo “Não é Não”, instituído pela Lei Federal nº 14.786/2023, em prol das mulheres.

Trata-se de providência decorrente do Projeto de Lei n.º 03/2023 [1] engendrado diante do elevado índice de violência sexual, que, segundo a mais recente pesquisa concretizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atingiu 885 mil mulheres em um universo de 1,2 milhão de vítimas [2]. O Brasil segue parâmetros internacionais [3], destacando-se o Protocolo “No Callamos” adotado em Barcelona desde 2018, com o desiderato de evitar e combater constrangimentos e truculências em prejuízo do gênero feminino [4].

Proprietários de casas noturnas e boates, bem como os empreendedores de espetáculos musicais e shows, terão que atentar para as novas regras, preparando-se para o seu necessário cumprimento, visto que, caso contrário, poderão ser punidos [5]. Os deveres impostos aos agentes econômicos encontram-se sediados no artigo 6º, incisos I a VI, da citada Lei, que versa sobre providências não consideradas complexas, mas que implicarão gastos para a sua implementação.

Isso porque terão que dispor de, no mínimo, uma pessoa qualificada para o atendimento do protocolo, não sendo indicada qual a profissão ou a formação técnica imprescindível para este mister. Importante que os empresários do ramo não atribuam esta tarefa a qualquer um dos seus funcionários ou prestadores de serviço, mas, sim, a quem realmente disponha de treinamento específico para lidar com a situação.

A mencionada exigência coaduna-se com o direito basilar de todo e qualquer consumidor de ter resguardada a sua incolumidade física e psíquica [6], nos termos do artigo 6º, inciso I, da Lei nº 8.078/90, porém, no caso das mulheres, a normatização demonstra-se essencial diante do inaceitável cenário de frequentes violações. Outra providência compulsória é a afixação de material visível sobre como podem as vítimas acionar o protocolo e os contatos telefônicos da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180).

De acordo com o inciso III do aludido dispositivo do microssistema consumerista, a informação sobre os serviços ofertados é uma prerrogativa dos destinatários finais [7] e, no contexto em análise, dúvidas não pairam de que agiu bem o legislador em detalhar este encargo em conjunto normativo específico.

A novel Lei não se restringiu a esquadrinhar o direito à informação das consumidoras e o dever de os fornecedores disporem de recursos humanos capacitados para as recepcionar, avançando quanto aos procedimentos complementares. Vislumbrando-se indícios de violência, devem cumprir urgentes providências, não se limitando a solicitar o imediato comparecimento dos agentes públicos encarregados da segurança.

Medidas protetivas para a vítima foram preconizadas, prevendo-se o seu transporte para espaço seguro e apartado do agressor, inclusive, onde este não possa visualizá-la. Reconheceu-se a faculdade de a consumidora lesada indicar pessoa para acompanhá-la, a ser selecionada mediante a sua livre escolha. A preservação da vida, saúde e segurança dos destinatários finais dos produtos e serviços é reconhecida em sede mundial, sendo enaltecida nos sistemas civil e common law [8], razão pela qual a Lei nº 14.786/2023 compatibiliza-se com a seara consumerista.

O mercado deve atentar adrede para o seu dever de isolar o local em que se notem “vestígios da violência”, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente, e ainda contribuir para a identificação das possíveis testemunhas do fato. Não obstante o inciso V do artigo 6º, da Lei Federal nº 14.786/2023, não obrigue os estabelecimentos a disporem de câmeras de segurança, considera-se de inquebrantável relevância esta medida, visto que auxiliará no cumprimento das diligências anteriormente referidas.

Nessa senda, convém possuir tais instrumentos, conquanto tenham os fornecedores que arcar com os pertinentes custos, não olvidando a prévia comunicação ao público e os cuidados com o quanto determinando pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais [9]. Caso optem por adquiri-los, além de ter que preservar o conteúdo gravado pelo prazo mínimo de 30 dias, devem assegurar o acesso pelas autoridades competentes e pessoas diretamente envolvidas.

O teor do Protocolo “Não é Não” harmoniza-se com a Teoria da Qualidade dos produtos e serviços [10], incorporada, consoante leciona Antônio Herman Vasconcellos e Benjamin, pelo microssistema consumerista brasileiro [11]. Outrossim, amolda-se à luta das mulheres por condições dignas de presença em locais de entretenimento, para que sejam recebidas de forma segura e tenham certeza de que há uma estrutura condizente com o respeito à sua integridade física, psíquica e econômica.

Apresentando-se o estabelecimento ou evento em consonância com a legislação, atrairá muito mais a frequência do público feminino, gerando confiança [12], por isso interessante também que optem por demais ações direcionadas a preservá-lo, nos termos do art. 7º, inciso I, da multicitada Lei [13]. Na hipótese de constrangimento à vítima, optou o legislador por imputar o caráter facultativo para a retirada do infrator do espaço e o impedimento do seu reingresso até a finalização das atividades, como se depreende do exame do inciso II do sobredito dispositivo.

A criação de um código, pelos estabelecimentos e gestores de eventos, com o escopo de que as mulheres possam alertar os funcionários sobre atos de violência e/ou de constrangimento, não possui natureza coercitiva, de acordo com o art. 7º, inciso III, do Protocolo “Não é Não”. Todavia, concebe-se que constitui instrumento de indubitável importância para facilitar a comunicação das vítimas com os responsáveis pela segurança do local, visto que, em regra, sentem-se ameaçadas pelos causadores dos danos sofridos e enfrentam dificuldades para os denunciar.

A sua afixação nos sanitários femininos facilitará a sua utilização e atenderá ao propósito da legislação consumerista de colocar serviços seguros no mercado, como aduzem Jean Calais-Auloy e Henry Temple [14]. A existência de tal aparato possibilitará ao fornecedor que diligencie, de forma mais ágil, o contato com os órgãos públicos competentes, evitando-se que seja taxado de omisso quanto às tarefas obrigatórias.

A responsabilidade civil dos proprietários das casas noturnas, boates, realizadores de espetáculos musicais e shows, ocasionada pelo descumprimento das regras sobre a segurança das mulheres, é objetiva, em conformidade com os arts. 7º, parágrafo único, e 25, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor [15]. Do mesmo modo, os arts. 927, parágrafo único, e 931, ambos do Código Civil Pátrio, estabelecem que os empresários serão responsabilizados, independentemente da análise do elemento anímico ou subjetivo, quando da execução de atividades no campo mercadológico [16].

Com efeito, é cediço que o descumprimento das determinações do Protocolo “Não é Não”, por parte dos agentes empreendedores, poderá ensejar a aplicação das sanções cabíveis [17], como estatui o art. 10 da multicitada Lei, por isso compete-lhes observar as multicitadas regras.

Receber as mulheres e quaisquer outras pessoas, com segurança e adequação às normas vigentes, sempre foi um dever do setor mercadológico desde a década de 90, quando se iniciou a vigência da Lei n.º 8.078/90, na condição de microssistema de ordem pública e interesse social. Entrementes, nas últimas décadas, a violência viril e demais condutas atentatórias à dignidade das mulheres recrudesceram no mundo e no Brasil, de modo tal que se tornou de inquebrantável proeminência a normatização de direitos e deveres, havendo um detalhamento quanto aos já existentes.

Preservar a integridade física, psíquica e econômica das consumidoras em ambientes de entretenimento, zelando-se por sua dignidade, honra e intimidade, são obrigações asseguradas pela nova legislação que suscitam uma atuação coesa e integrada dos entes e órgãos que fazem parte do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e demais encarregados pela segurança pública e saúde. Que a efetividade seja alcançada e que as normas não fiquem apenas no plano normativo retórico!



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