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porto velho, quarta-feira 11 de dezembro de 2024
BRASIL: O projeto de lei que torna automática a prisão preventiva para certos crimes contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, se convertido em lei, tende a ser declarado inconstitucional pela corte.
A Câmara dos Deputados aprovou a urgência do Projeto de Lei 714/2023, que altera o artigo 310 do Código de Processo Penal para tornar obrigatória a decretação de prisão preventiva na audiência de custódia em casos de crimes hediondos, roubo, associação criminosa qualificada e quando for configurada reincidência criminal. A proposta também altera o prazo para a audiência de custódia de 24 para 72 horas.
O relator do projeto, deputado Kim Kataguiri (União-SP), deu parecer favorável à proposta do Coronel Ulysses (União-AC). Kataguiri alegou que a liberdade provisória é negada em poucos casos, o que comprometeria a segurança pública e dificultaria a elucidação de crimes.
Atualmente, o preso provisório deve ser submetido à audiência de custódia em até 24 horas. Se o juiz entender que estão presentes os requisitos do artigo 312 do CPP e as medidas cautelares alternativas são insuficientes, deve converter a prisão em preventiva. Caso contrário, deve relaxar a prisão ilegal ou conceder liberdade provisória.
Conforme o artigo 312 o CPP, “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. A medida também pode ser imposta em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.
É admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos com pena máxima superior a quatro anos: se o acusado tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado; se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; e quando houver dúvida sobre a identidade da pessoa ou quando ela não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação (salvo se houver outras razões para a detenção).
O CPP proíbe a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.
O Projeto de Lei 714/2023 contraria a Constituição Federal e precedentes do Supremo Tribunal Federal, afirmam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo, aponta que o PL é incompatível com o princípio constitucional da presunção de inocência. “Prisão preventiva automática, sem fundamentos concretos, é antecipação de pena, vedada pela Constituição Federal”, diz Bottini.
Além de inconstitucional, a proposta é um “grave retrocesso”, avalia Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “A prisão preventiva pode ser decretada quando houver necessidade. Uma prisão sem necessidade não é cautelar. Não sendo cautelar, uma prisão sem necessidade é inconstitucional, porque é execução antecipada da pena — e isso a partir da audiência de custódia”, aponta Lopes Jr.
A coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Lúcia Helena Oliveira, ressalta que, no sistema jurídico brasileiro, a liberdade é a regra, e a prisão, exceção. “A Constituição Federal preserva o princípio da presunção de inocência. Portanto, a prisão é uma medida absolutamente excepcional e não deve ser imposta como regra. Pelo contrário: a regra deve ser a da liberdade. O acusado deve poder provar a sua inocência estando em liberdade”, destaca Lúcia Helena.
O Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade da prisão provisória automática em certos tipos de delitos em algumas ocasiões.
A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990) proibiu a concessão de liberdade provisória aos acusados de tais tipos penais. Além disso, estabeleceu que a pena seria cumprida integralmente em regime fechado. O Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) também determinou a obrigatoriedade da prisão para delitos mais graves.
Em 2007, o STF declarou inconstitucional o artigo 21 do Estatuto do Desarmamento, que negava liberdade provisória aos acusados de posse ou porte ilegal de arma de uso restrito, comércio ilegal de arma e tráfico internacional de arma. A corte considerou que o dispositivo violava os princípios da presunção de inocência e do devido processo legal (ADI 3.112).
Dois anos depois, o ministro Celso de Mello (hoje aposentado) concedeu a ordem em Habeas Corpus a uma acusada de tráfico de drogas – crime equiparado a hediondo (HC 97.976). O magistrado apontou que o fato de a Constituição estabelecer a inafiançabilidade dos crimes hediondos e equiparados não impede a concessão da liberdade provisória, mas apenas sua obtenção por pagamento.
De acordo com Celso de Mello, a presunção de inocência prevalece até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. “A mera alusão à gravidade do delito ou a expressões de simples apelo retórico não valida a ordem de prisão cautelar; sendo certo que a proibição abstrata de liberdade provisória também se mostra incompatível com tal presunção constitucional de não-culpabilidade”, disse o ministro, apontando que a prisão preventiva só poderia ser decretada se presentes os requisitos do artigo 312 do CPP.
No mesmo ano, o Plenário do Supremo decidiu que a Constituição é literal ao dizer, no inciso LVII do artigo 5º, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (HC 90.645). Portanto, proibiu a execução provisória da pena. Em 2016, a corte mudou de entendimento e passou a permitir a prisão após condenação em segunda instância (HC 126.292). A decisão foi instrumental para a “lava jato” e permitiu a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, terminando por impedi-lo de concorrer nas eleições de 2018. Em 2019, o STF retomou o entendimento anterior e voltou a só permitir a execução da pena após o fim do processo (ADCs 43, 44 e 54).
Já em 2012, o Plenário declarou a inconstitucionalidade da proibição de liberdade provisória para acusados de tráfico e associação ao tráfico de drogas (HC 104.339). A corte novamente concluiu que é preciso fundamentar o deferimento ou a não manutenção da prisão provisória.
Com fundamento semelhante, o Supremo declarou, em 2006, a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos – que estabelecia que a pena seria cumprida integralmente em regime fechado (HC 82.959). Os ministros apontaram que a obrigatoriedade do regime fechado conflita com a garantia da individualização da pena, prevista no artigo 5º, XLVI, da Constituição.
Dessa maneira, o STF editou a Súmula Vinculante 26: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.
Devido a essa decisão do Supremo, a Lei dos Crimes Hediondos foi alterada pela Lei 11.464/2007. A norma fixou que a progressão de regime para os condenados por crimes hediondos ou equiparados ocorrerá após o cumprimento de dois quintos da pena, se o réu for primário, e de três quintos, se reincidente. No entanto, ficou mantido o regime fechado inicial.
Mas o STF também considerou inconstitucional essa obrigatoriedade em 2017 (ARE 1.052.700). O relator do caso, ministro Edson Fachin, destacou a necessidade de reafirmação de jurisprudência em razão da relevância do tema.
Segundo ele, embora esteja consolidado no STF o entendimento de que é inviável a fixação do regime inicial fechado unicamente em razão da hediondez do crime, essa orientação é “comumente descumprida pelas instâncias ordinárias”, com o argumento de que a declaração de inconstitucionalidade, por ter se dado de forma incidental, não teria efeito erga omnes (para todos) e sua aplicação não seria automática.
O ministro lembrou ainda a necessidade de se observar o princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI) na definição do regime prisional.
“Considerando a manifesta relevância da matéria suscitada, que ultrapassa os interesses subjetivos das partes, reputo necessária a submissão da questão à sistemática da repercussão geral, forte no alcance da orientação firmada por esta Corte acerca da fixação do regime inicial fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo ou equiparado”, afirmou o relator.
Na ocasião, a corte firmou a Tese de Repercussão Geral 972: “É inconstitucional a fixação ex lege, com base no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/1990, do regime inicial fechado, devendo o julgador, quando da condenação, ater-se aos parâmetros previstos no artigo 33 do Código Penal”.
A aprovação do PL 714/2023 pode abrir uma nova trincheira na batalha entre o Congresso, especialmente os bolsonaristas, e o Supremo Tribunal Federal. O STF vem, há mais de uma década, tomando algumas das decisões políticas mais importantes do Brasil. Algumas delas foram a que permitiu uniões estáveis homoafetivas; as que validaram as cotas raciais em universidades e concursos; a que permitiu o aborto de anencéfalos; e as que determinaram que estados e municípios tinham competência para impor medidas sanitárias durante a epidemia de Covid-19.
A corte também teve um papel essencial ao frear o ímpeto golpista de bolsonaristas, especialmente com as decisões nos Inquéritos das Fake News e dos Atos Antidemocráticos. Críticos apontam que o Supremo vem atuando, muitas vezes, de forma ativista.
Talvez a principal razão sociológica da intensificação do fenômeno seja o fato de que, como o STF adquiriu papel político, os grupos políticos e ideológicos passaram a lutar para incluir na corte pessoas que partilhem os seus ideais e finalidades.
Com a alegação, muitas vezes desonesta, de excesso de ativismo judicial, o Supremo virou um dos principais alvos da classe política nos últimos anos, especialmente de bolsonaristas e políticos do Centrão.
Durante o seu mandato como presidente, Jair Bolsonaro fez dos ataques ao STF uma estratégia para galvanizar seus apoiadores. As investidas têm duas origens. A primeira está nas decisões que declararam que estados e municípios têm competência para impor medidas sanitárias contra a Covid-19, como as de isolamento social. A segunda está nos inquéritos que apuram a propagação de fake news e atos antidemocráticos, bem como o financiamento dessas atividades por bolsonaristas. Há ainda um terceiro foco de ataques contra o Judiciário, mais especificamente, em face do Tribunal Superior Eleitoral e seus magistrados, relativo ao descrédito das urnas eletrônicas.
Em 2021, Bolsonaro pediu ao Senado o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. A medida foi repudiada pelo Supremo e pela OAB, e rejeitada pelo presidente da casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem não existiam fundamentos para impeachment contra ministros do STF. No ataque de bolsonaristas às sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro, o prédio do Supremo foi o que sofreu maiores perdas.
Mesmo com a derrota de Bolsonaro e a reconstrução do STF, o Congresso segue debatendo propostas para invalidar decisões e restringir os poderes da corte.
Depois de o Supremo invalidar a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, o Congresso aprovou projeto de lei que ressuscita a medida. Quando o tribunal estava a um voto de descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal, Rodrigo Pacheco apresentou proposta de emenda à Constituição para tornar crime a posse de qualquer quantidade de drogas. Após a ministra Rosa Weber (hoje aposentada) votar pela descriminalização do aborto, senadores protocolaram pedido para que a população decida a questão em plebiscito.
No último dia 9 de outubro, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou um pacote de medidas para emparedar ministros do Supremo. Entre as propostas aprovadas, estão a PEC 8/2021, que limita as decisões monocráticas em tribunais superiores; a PEC 28/2024, que permite ao Congresso suspender decisões do STF; e o Projeto de Lei 4.754/2016, que permite o impeachment de ministro do Supremo que, na ótica do Congresso, usurpe competência legislativa.
A ofensiva parlamentar é uma reação à suspensão das emendas impositivas apresentadas por deputados federais e senadores ao orçamento da União, até que o Congresso edite novos procedimentos para que a liberação dos recursos observe os requisitos de transparência, rastreabilidade e eficiência.