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porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
Na efervescência dos processos apelidados de operação "lava jato", os jornalistas abandonaram qualquer distanciamento e senso crítico para apresentar à população meras suspeitas ou suposições como verdades absolutas. A pressa, a competição pelo "furo" e a necessidade de cativar as fontes — a polícia, o Ministério Público Federal e o juiz Sergio Moro — levaram repórteres e editores a abdicar de seu papel para se tornar integrantes da chamada "força-tarefa".
Essa é a conclusão a que se chega com a entrevista da jornalista Christianne Machiavelli à repórter Amanda Audi, do site The Intercept Brasil. Machiavelli, ex-assessora do juiz Sergio Moro, trabalhava sozinha no departamento de comunicação da "lava jato" desde o seu início até agosto deste ano, quando pediu demissão para abrir uma assessoria de imprensa voltada para clientes da área jurídica.
A assessora fez uma avaliação da atuação da imprensa em relação à "operação" e contou como sua experiência a fez mudar o modo como vê o Direito. "Depois da 'lava jato', eu entendi o quanto a privacidade e intimidade do criminoso são necessárias", afirma.
A mudança está diretamente relacionada à forma como a imprensa e a operação tratavam os investigados. "Era tanto escândalo, um atrás do outro, que as pessoas não pensavam direito. As coisas eram simplesmente publicadas."
Leia a entrevista:
The Intercept Brasil — Você atuou no centro nervoso da "lava jato" desde o início, em 2014. Como vê a evolução da operação nestes anos?
Christianne Machiavelli — A gente não tinha noção do que ia ser. No começo, a operação era contra doleiros que operavam no câmbio negro, e então apareceu o [ex-diretor da Petrobras] Paulo Roberto Costa, por causa de um presente que recebeu. Só fui entender o que era a"lava jato" na 7ª fase, em novembro de 2014, depois da delação do Júlio [Camargo] e do Augusto [Ribeiro, executivos da Toyo Setal]. Nesse momento é que apareceu a grande história: que existia um clube das empreiteiras, com as regras do jogo. Foi a partir daí que a imprensa comprou a "lava jato".
The Intercept Brasil — A "lava jato" manteve o interesse da mídia por anos. Era uma estratégia pensada?
Christianne Machiavelli — Não acho que houve estratégia, pelo menos por parte da Justiça Federal. Mas a responsabilidade da imprensa é tão importante quanto a da Polícia Federal, do Ministério Público e da Justiça. Talvez tenha faltado crítica da imprensa. Era tudo divulgado do jeito como era citado pelos órgãos da operação. A imprensa comprava tudo. Não digo que o trabalho não foi correto, ela se serviu do que tinha de informação. Mas as críticas à operação só vieram de modo contundente nos últimos dois anos. Antes praticamente não existia. Algumas vezes, integrantes da PF e do MPF se sentiam até melindrados porque foram criticados pela imprensa.
The Intercept Brasil — Pode citar exemplos?
Christianne Machiavelli — O Maurício Moscardi Grillo [delegado da "lava jato" em Curitiba], quando deu entrevista para a Veja dizendo que perderam o timing para prender o Lula, foi muito criticado, e a polícia ficou melindrada. Mesma coisa quando o Carlos Fernando Santos Lima falou que o MPF lançou "um grande 171" para conseguir delações. O PowerPoint do Deltan Dallagnol sobre o Lula. Eles ficaram muito chateados quando a imprensa não concordou com eles. Todo mundo fica magoado, mas não se dá conta daquilo que fala. Não posso dizer que ele [Sérgio Moro] não ficasse melindrado, mas uma única vez respondemos a um veículo. Foi um caso do Rodrigo Tacla Duran, num domingo de manhã. Ele me chamou para a gente responder à notícia que dizia que Carlos Zucolotto, amigo, padrinho de casamento e ex-sócio da esposa de Moro, fazia negociações paralelas sobre acordos com a força-tarefa da "lava jato". Nesse caso ele se sentiu ofendido, mais pelo processo do que pessoalmente.
The Intercept Brasil — Para você, por que a imprensa comprou a "lava jato" sem questionar?
Christianne Machiavelli — Era tanto escândalo, um atrás do outro, que as pessoas não pensavam direito, as coisas eram simplesmente publicadas. O caso da cunhada do [ex-tesoureiro do PT João] Vaccari foi bem significativo. Os jornalistas foram na onda do MPF e da PF. Todo mundo divulgou a prisão, mas ela foi confundida com outra pessoa. Foi um erro da polícia. Quando perceberam o erro, Inês já era morta. O estrago já tinha sido feito. Acho que a gente vem de uma fase que remonta à ditadura, em que a imprensa foi violentamente cerceada. Na "lava jato" a imprensa tinha muita informação nas mãos, dos processos, e entendeu que era o momento de se impor.
The Intercept Brasil — Qual a responsabilidade da imprensa?
Christianne Machiavelli — Vou dar um exemplo. O áudio do Lula e da Dilma é delicado, polêmico, mas e o editor do jornal, telejornal, também não teve responsabilidade quando divulgou? Saíram áudios que não tinham nada a ver com o processo, conversas de casal, entre pais e filhos, e que estavam na interceptação. A gente erra a mão em nome de um suposto bem maior.
The Intercept Brasil — Você já disse que a "lava jato" mudou a visão sobre o Direito. Antes era legalista, que olha apenas o cumprimento da lei. Agora é garantista, em que a lei deve ser cumprida preservando direitos. Por quê?
Christianne Machiavelli — Como jornalista, minha base era na cobertura policial. Os repórteres que acompanham a polícia querem a imagem do preso, a história dele. Quanto mais sensacionalista, mais cliques, mais as pessoas vão ler. Mas, depois da "lava jato", eu entendi o quanto a privacidade e intimidade do criminoso são necessárias. Lembro quando o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral apareceu com algemas nos pés e nas mãos e a imprensa abusou da imagem. Eu passei a olhar pro réu de uma maneira mais humanitária. Também acho que a lei de execução penal tem que ser aplicada, deve ser a base para garantir o direito dele de ser humano. Eu acho que bandido bom é o bandido que pode ser recuperado, apesar de tudo. A lei deve ser aplicada sempre. A questão aí é o peso da mão, da caneta, da maneira que o réu é tratado, o preso é tratado.
The Intercept Brasil — Isso envolve o hábito de levar os presos da operação para Curitiba e o circo midiático que se forma em torno disso?
Christianne Machiavelli — Durante o período ostensivo das fases da "lava jato", todos ficaram presos em Curitiba, com raras exceções, como Sérgio Cabral. Se criou essa cultura de trazer todos os presos pra cá, porque o juiz entende que o caso se desenrolou em Curitiba. Mas, no momento de uma execução penal, é a lei que vale, e ela diz que o preso tem direito a cumprir pena perto de seu domicílio, para a família poder visitá-lo. O José Dirceu, por exemplo, por um bom tempo não recebeu visita da família. Ele estava com os bens bloqueados e a família não tinha condições. Os empreiteiros, por outro lado, as famílias vinham sempre.
The Intercept Brasil — Você questionava Moro sobre decisões controversas, como a de levar os presos para Curitiba?
Christianne Machiavelli — O trabalho da assessoria não era de questioná-lo sobre suas decisões, mas dar publicidade aos seus atos.
The Intercept Brasil — Você acha que a "lava jato" influenciou as eleições deste ano? Por exemplo, o Moro ter levantado o sigilo da delação do Palocci na semana passada.
Christianne Machiavelli — Só posso dizer que essa eleição é a mais atípica que vivi desde que tirei meu título. Quanto à colaboração do Palocci, entendo que quase a totalidade do termo divulgado já era de conhecimento público. Ele apenas deu nome aos bois, fato que também já teria sido mencionado pelo Paulo Roberto Costa e, se não me engano, por Youssef também. Portanto, não sei se influenciou. O que influenciou no resultado dessas eleições foram as notícias falsas, o ódio, o medo.
The Intercept Brasil — Além do Palocci, Moro adiou depoimento do Lula por causa do período eleitoral e o MPF pediu mais uma condenação a ele, dias antes da eleição. Acha que tem algo a ver?
Christianne Machiavelli — Sim. Pelo que me lembro, o adiamento do depoimento do Lula ocorreu há alguns meses e o magistrado justificou em despacho. Sobre o pedido do MPF, não vejo relação também, pois estava no prazo das alegações finais. Destaco que o prazo para as alegações finais foi determinado há pouco tempo, pois ficou parado por meses a fio devido à quantidade de perícias peticionadas pela defesa de Lula e o MPF ao juízo. Caso nada disso tivesse acontecido, o processo já poderia ter sido sentenciado e, inclusive, com autos conclusos para um possível julgamento de apelação no 2° grau. Ou seja, a juntada das alegações finais por parte do MPF é apenas coincidência decorrente de uma tramitação processual lenta.
The Intercept Brasil — Mesmo estando dentro dos prazos, é inegável que esses fatos podem favorecer ou prejudicar candidatos. Não seria possível esperar passar o pleito para fazê-los? Isso não pode colocar em risco a legitimidade da "lava jato"?
Christianne Machiavelli — A celeridade processual é uma premissa do Judiciário e inclusive exigência do CNJ. Não é possível que o Judiciário pare em detrimento de um processo eleitoral. A celeridade processual é em prol do réu e não do magistrado. Pense: se o MPF tivesse se manifestado em favor do réu, então a celeridade processual seria boa? Mas como a manifestação é condenatória, a celeridade é ruim? Não há dois pesos e duas medidas. Há prazo que precisa ser cumprido.
The Intercept Brasil — Qual o seu maior acerto e o maior erro nesse período?
Christianne Machiavelli — Meu maior acerto foi sistematizar e compilar todas as informações da "lava jato" em uma planilha, que servia para a imprensa acompanhar. E cumprir os deadlines dos jornalistas. Para mim foi sofrido. Eu engordei 30 quilos. Tomava remédio controlado para depressão e ansiedade. Cheguei a picotar um chip de celular porque as pessoas me ligavam até meia-noite todos os dias. Eu trabalhava fim de semana, feriado... Agora chego em casa e vou fazer comida, ver série.
The Intercept Brasil — E agora, o que vai fazer?
Christianne Machiavelli — Vou abrir uma empresa de gestão de crise, estou vendo nome, contador. Lidar com crise foi algo que aprendi na prática.