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porto velho, quarta-feira 25 de dezembro de 2024
A expressão "rico como um argentino" parece inacreditável nos dias de hoje, quando o país volta a mergulhar em mais uma de suas retumbantes e cíclicas crises econômicas, com alta inflação (50% ao ano), desvalorização da moeda e pobreza a 33,5%. Mas era uma frase muito comum, repetida na Europa, especialmente em Paris, tanto por populares como por diplomatas e escritores.
Um dos que registraram isso em seus livros, não sem uma ponta de inveja, foi o autor francês Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), autor do clássico "Viagem ao Fim da Noite". Enquanto isso, as irmãs-escritoras Victoria e Silvina Ocampo, como tantos integrantes de famílias ricas argentinas, viajavam a Paris levando suas próprias vacas à bordo, para ter leite de qualidade enquanto atravessavam o Atlântico.
A época de ouro da economia argentina costuma ser identificada com a chamada época liberal (1880-1913), que ocorre depois que o país já havia atravessado os distúrbios políticos pós-independência, passava a receber muita mão-de-obra estrangeira e, enfim, adotava políticas econômicas de abertura para o mundo.
Primeiro, exportando lã de ovelha; depois grãos e couro; e, no seu auge, quando se popularizou a técnica de exportar carne congelada, aí sim deu-se um grande salto.
Segundo o Maddison Historical Statistics Project, no fim do século 19, a Argentina era um dos países mais ricos do mundo, e manteve-se neste seleto clube entre 1880 e 1940. Mais: entre 1895 e 1896, chegou a ser o país com o PIB per capita mais alto do planeta.
Os investimentos estrangeiros não deixavam de acompanhar o movimento. Entre 1873 e 1923, 71% dos investimentos estrangeiros na América do Sul iam para a Argentina. Com esse passado, a pergunta que muitos se fazem hoje é: quando foi que as coisas começaram a dar errado?
Historiadores econômicos pontuam alguns momentos de transformação - que envolvem mudanças na política, na cultura, na sociedade - que colaboraram para o crescimento da instabilidade. Psicanalistas também explicam que, com o passar do tempo, a repetição dos ciclos de crise criou hábitos curiosos, que demonstram certa avareza, em muitos argentinos com relação ao dinheiro.
DITADURAS
Para Juan Gabriel Tokatlian, da Universidade Torcuato di Tella, os vários regimes militares pelos quais passou a Argentina, entre 1930 e 1983, debilitaram a institucionalidade do país, "o que sempre traz desgaste à economia, espanta investimentos, colabora para o aumento da desigualdade, além de implementar um trauma social que vem com a perseguição e as desaparições políticas".
Ainda assim, as rupturas também conviveram com primaveras econômicas, como diz o historiador Luis Alberto Romero, autor de "La Larga Crisis Argentina". "No fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970, viveu-se uma época muito boa, com um impulso à industrialização. Tínhamos números que parecem hoje inacreditáveis, como desemprego entre 3 e 4%, e pobreza em 3%", diz.
Essa industrialização, defende, foi sendo sucateada pelo desgaste das instituições provocado pela última ditadura militar (1976-1983) e pelas privatizações da década de Carlos Menem (1989-1990)."Se a privatização foi boa para alguns setores industriais, por outro lado tirou do Estado a função de cuidar dos trabalhadores e de seus direitos", afirma Romero.
DO PERONISMO A MACRI
"É quando a pobreza começa a se impor, e seu aumento exponencial decola aí, depois com a crise de 2001, e agora com todos esses anos de atropelos do kirchnerismo e ineficácia do governo Mauricio Macri de resolver o assunto", diz Romero. Hoje, a cifra da pobreza argentina é de 33,5%, segundo a medição mais confiável, a da Universidad Católica.
Sobre o papel do peronismo na crise cíclica do país, há diferentes correntes de pensamento. Juan Domingo Perón, quando no poder (1946-55 e 73-74), introduziu direitos trabalhistas que, num momento de massificação do trabalho industrial, ofereceram bem-estar à população ao mesmo tempo em que não tiveram custos grandes para os cofres públicos.
Por outro lado, como diz Tokatlian, foi-se criando uma economia de isolamento, fechada para o mundo e com excesso de gasto público, tal como na época kirchnerista. "O país começou a gastar mais do que tinha para se manter popular." Há que se levar em conta, também, as diferentes versões do peronismo.
Para Tokatlian, Menem era um peronista liberal e terminou por deixar a crise mais aguda ao abrir o país de forma desmesurada, "com privatizações sem controles e sem planejamento." Foi ao longo destes anos de ciclos que terminam em hiperinflação, algo que agora parece próximo, que economizar em dólar virou costume nacional.
Com tanto dólar com os cidadãos, quem vive na Argentina já não se espanta de ver nas páginas policiais notícias de assaltos a idosos que por hábito guardam a fortuna de suas vidas em casa, no que os argentinos costumam dizer que guardam em seu "colchón bank" (ou seja, debaixo ou dentro do colchão).Poucos argentinos acreditam no sistema bancário, por conta da experiência da hiperinflação de Raúl Alfonsín e do "corralito" (que impediu a retirada de pesos dos bancos) em 2001.
Mesmo pessoas adultas e razoáveis às vezes podem ser vistas correndo a casas de câmbio ou a caixas-fortes (um recurso que há nos bancos, que não implica guardar o dinheiro na conta, e sim num cofre) atrás da moeda americana.
O psicólogo Guillermo Muñoz crê que, ao longo dos anos, criou-se uma "grieta" (fenda, abismo), uma divisão entre argentinos, que está na base do problema. "Uma parte do país não aguenta a outra parte e não consegue ver matizes, coisas boas e coisas ruins daquele que é seu inimigo. Por isso cada governo se crê fundacional. Você vê pelos slogans de campanha -'construir a Argentina que sonhamos' (Macri), 'reconstruir a Argentina' (Alberto Fernández)-, quando é óbvio que em quatro anos essa é uma tarefa impossível".
E complementa: "Todos querem fazer rápido, uns querem emitir moeda loucamente para resolver os problemas e criam inflação, outros, ajustes enormes que criam explosões populares. Esse é o ciclo, e que não terá fim se não se propuser algo novo."