Fundado em 11/10/2001
porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
BRASIL: A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara aprovou na quarta-feira (24/4) um projeto de lei complementar (PLP) que autoriza os estados e o Distrito Federal a criar leis sobre posse e porte de armas de fogo. A proposta diz respeito ao uso do armamento para “defesa pessoal, práticas desportivas e controle de espécies exóticas invasoras”.
Uma corrente de constitucionalistas — respaldada pela interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre o tema — defende que o projeto viola as regras de competência previstas na Constituição. Outra corrente, porém, não vê tal problema.
O artigo 22 da Constituição traz uma lista de temas que são de competência privativa (ou seja, exclusiva) da União. Entre eles, estão o Direito Penal e o Processual Penal, indicados no inciso I. Esse trecho é usado na defesa da tese de que somente a União pode criar leis sobre posse e porte de armas de fogo.
Mas o parágrafo único do artigo 22 diz que uma lei complementar pode autorizar os estados a legislar sobre questões específicas dos temas listados no mesmo dispositivo.
A jurisprudência do STF é contrária ao que o projeto de lei prevê. Em diversos precedentes, a corte já declarou a inconstitucionalidade de normas locais que autorizavam a posse e o porte de armas de fogo.
Um dos principais fundamentos do Supremo é a existência de uma lei federal que disciplina o tema — no caso, o Estatuto do Desarmamento, cujo artigo 6º autoriza o porte de armas a algumas categorias (militares, agentes de segurança pública, empresas de segurança privada e transporte de valores, atletas de esportes que usam armas de fogo etc.).
O STF se baseia no artigo 24 da Constituição, que prevê as hipóteses de competência concorrente entre a União e os estados. O parágrafo 4º desse dispositivo diz que “a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”.
Na visão da corte, a existência da lei federal que trata do tema remete a essa situação e invalida normas estaduais que autorizem o porte de arma em outras situações (para além daquelas previstas no Estatuto do Desarmamento).
Isso tudo é colocado em conjunto com o argumento da competência exclusiva da União para legislar sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, além da questão do inciso VI do artigo 21 da Constituição — que prevê a competência material da União para autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de “material bélico”.
De acordo com o advogado Georges Abboud, professor de Direito Constitucional, o projeto de lei aprovado na CCJ da Câmara “é inconstitucional”, pois “fere o artigo 22 de competência legislativa exclusiva”.
O advogado constitucionalista e professor Raphael Sodré Cittadino concorda que a proposta viola as regras de competência, “porque a Constituição não permite uma delegação geral de competência por tema”.
Segundo ele, para que uma lei complementar autorizasse a delegação de competência, “teria de haver uma disciplina específica a ser delegada, com regras claras de delegação”.
O Congresso também não poderia “delegar uma competência que manifestamente desagregasse o país ou ferisse o princípio federativo”. Cittadino entende que esse pode ser o caso do PLP em questão.
“Há uma dinâmica de cunho institucional-federativa estabelecida pelo constituinte”, indica o constitucionalista Lenio Streck. “Esse projeto é uma imitação barata do federalismo dos Estados Unidos”.
O Brasil tem “outro modelo federativo-legislativo”, diz Streck. De acordo com ele, o país “quer colocar motor elétrico sem que tenha tomadas para alimentação”. No Brasil, a função dos estados é “residual” e “nunca pode ser a principal, que está estabelecida na Constituição”.
Streck considera que o projeto, “em outra medida”, revoga o Estatuto do Desarmamento. “Impressiona o fetichismo por armas”, completa ele.
Ana Paula de Barcellos, professora de Direito Constitucional, cita a possibilidade aberta pelo parágrafo único do artigo 22 da Constituição. “Parece ser o caso”, avalia ela.
Já a constitucionalista Vera Chemim ressalta que o Brasil é uma República Federativa, na qual “os entes da federação detêm autonomia política e administrativa”.
Na interpretação dela, com base no parágrafo único do artigo 22, “a União deveria descentralizar a sua competência legislativa”, ou seja, “delegar a sua competência privativa de legislar sobre questões específicas para os entes da federação”.
Em outras palavras, “os estados deveriam ter total autonomia para legislar no sentido de corrigir os seus problemas”. Sem isso, Chemim acredita que a essência do modelo federativo nunca será concretizada.
Isso porque “cada estado tem as suas peculiaridades regionais e locais”, que deveriam ser sanadas por meio dessa delegação da competência legislativa da União.
É o que ocorre nos EUA, cujo modelo federativo, segundo a constitucionalista, “serviu de inspiração para o Estado brasileiro”.
O raciocínio de Chemim não vale apenas para o caso das armas. Ela cita como exemplo as regras tributárias, “cuja descentralização seria crucial para que os estados ficassem responsabilizados pela administração e arrecadação de tributos, sem ficarem na dependência da sua distribuição pela União”.
Mas, segundo ela, a jurisprudência do STF e a interpretação baseada no Estatuto do Desarmamento e nas competências constitucionais minam a autonomia dos estados. Na prática, não permitem a descentralização desejada pela advogada.