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porto velho, segunda-feira 25 de novembro de 2024
JURÍDICO - É justificável que o Estado brasileiro busque frear o avanço do novo coronavírus. Esse combate, no entanto, não pode ser posto em prática com base em portarias que não têm amparo legal e que atropelam garantias previstas em lei.
O entendimento é do juiz Felipe Bouzada Flores Viana, plantonista da 2ª Vara Federal de Roraima. O magistrado impediu a deportação imediata de 55 indígenas da etnia Warao — sendo 32 deles crianças — que entraram no Brasil pela fronteira com a Venezuela. A liminar é desta sexta-feira (8/1).
Os indígenas foram pegos pela Polícia Federal depois que entraram no Brasil e estavam apreendidos na sede da Polícia Federal em Pacaraima. Segundo informações prestadas pela própria PF, eles seriam retirados do país após feitos "termos de deportação imediata".
A medida seria colocada em prática com base na Portaria 648/20,feita em conjunto pelos ministérios da Saúde, Justiça e Casa Civil. A norma, que restringe a entrada de estrangeiros no Brasil por causa da epidemia do novo coronavírus, prevê a deportação ou repatriação imediata, responsabilização civil, administrativa e penal, e inabilita
pedidos de refúgio.
Ocorre que tais previsões afrontam a Lei de Migração (13.445/17) e a Lei do Refúgio (9.474/97), que proíbem, em qualquer hipótese, a deportação imediata e a criminalização de migrantes.
"A previsão de deportação imediata prevista em seu artigo 8º [da portaria de 2020] não possui qualquer lastro legal, tratando-se de indevida inovação no ordenamento jurídico pelo Poder Executivo, sem o crivo do legislador. E por mais que o objetivo da norma seja impedir o avanço da Covid-19 no país, esse intento não pode ser buscado de forma utilitária e
a qualquer custo, atropelando garantias que demoraram séculos para serem conquistadas", afirma a decisão.
Ainda segundo o juiz, "por mais que a própria Republica Federativa do Brasil esteja enfrentando suas chagas e deficiências, com problemas estruturais, redução do PIB, cortes orçamentários, avanço da pobreza e ressurgimento da miséria, deixar de obstar em razão das mazelas internas a deportação imediata é ato desumano e até mesmo cruel, mormente ao se enfatizar que entre os indígenas há crianças e, possivelmente, pessoas doentes, idosos e mulheres grávidas".
"Logo, a situação se configura como mais um desafio a ser enfrentado e solucionado pelo gestor público nos limites e nos caminhos da lei, sendo inclusive aberta a própria possibilidade de deportação em si, conquanto observadas os procedimentos da Lei 13.445/17", conclui.
Segundo a Lei de Migração, citada pelo magistrado, a deportação deve respeitar o contraditório e a ampla defesa, garantido o recurso com efeito suspensivo, e não pode ocorrer
dentro de prazo inferior a 60 dias. Os migrantes também podem circular livremente no país até ter seu caso resolvido. Assim, os venezuelanos não poderiam estar na sede da PF.
O juiz fixou multa de R$ 1 milhão para cada indígena que for deportado, em caso de descumprimento da decisão.
Ação civil pública
A decisão foi tomada no âmbito de uma ação civil pública ajuizada em conjunto pela Defensoria Pública da União e pelo Ministério Público Federal em face da União. A peça é assinada pelos defensores Rafael Martins Liberato de Oliveira, Gabriel Saad Travassos do Carmo, João Freitas de Castro Chaves e Roberta Pires Alvim. Assina o documento pelo MPF o procurador Alisson Marugal.
O defensor público Rafael Martins comemorou a decisão. "A PF vem promovendo deportações sumárias, com base em sucessivas portarias do governo federal que autorizam tal procedimento a pretexto de combater a disseminação da Covid-19", afirmou à ConJur.
Ainda de acordo com ele, "a decisão renova a fé no Estado de Direito, já que a Constituição Federal, a Lei 13.445/17, além de tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, proíbem a deportação sumária e coletiva, assegurando a toda pessoa, quando for o caso, o direito a um processo de deportação justo e individualizado, sempre com a observância da garantia ao contraditório".
O governo federal de fato editou uma série de portarias prevendo as deportações sumárias. Conforme mostrou a ConJur em agosto de 2020, a primeira delas focava inteiramente em migrantes venezuelanos (Portaria 120/20).
Posteriormente,entretanto, a norma foi revogada em detrimento de outras mais amplas. A última delas foi justamente a Portaria 648/20, que, no caso concreto, serviu para justificar a apreensão e tentativa de deportação dos 55 indígenas venezuelanos.
Todas as portarias têm um ponto em comum:preveem a deportação, a inabilitação de pedido de refúgio, além da responsabilização civil, administrativa e penal de estrangeiros que
entram no país sem autorização. Por isso, mais do que barrar o ingresso, a norma passou a ser utilizada para expulsar os migrantes.
Decisões semelhantes
Em agosto, o juiz Jair Araújo Facundes, da 3ª Vara Federal Cível e Criminal do Acre, também determinou que a União suspendesse deportações, repatriações e outras medidas compulsórias feitas com base nas portarias do governo federal. Na ocasião, ele entendeu que a aplicação das normas resultaria em severo risco à vida, à saúde e à integridade de
pessoas refugiadas.
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, também chegou a apreciar caso semelhante no Habeas Corpus 184.828. Para ele, "a República Federativa do Brasil assumiu uma série de compromissos, refletidos, inclusive na legislação brasileira, que impede a retirada de estrangeiros do país quando esta medida importar em risco à vida e à integridade pessoal de tais indivíduos, direitos assegurados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Convenção Americana de Direitos Humanos".