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porto velho, domingo 24 de novembro de 2024
BRASIL: Panaceia que é sempre proposta após crimes de grande repercussão, o endurecimento da legislação penal é ineficaz para combater a criminalidade organizada, como as milícias. Esse enfrentamento, que deve ter planejamento de longo prazo, precisa ser feito por meio do aprimoramento da investigação e de políticas públicas de inclusão social, de acordo com a avaliação de especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Na última segunda-feira (23/10), milicianos da Zona Oeste do Rio de Janeiro incendiaram 35 ônibus e um trem, provocando o caos na cidade. Os ataques ocorreram em represália à morte, em operação policial, de Matheus da Silva Rezende, conhecido como Teteu e Faustão. Ele era apontado como o número dois da milícia Zinho, apelido do tio dele e chefe do grupo, Luis Antônio da Silva Braga.
A investida ocorreu em meio a uma escalada de violência no Rio, especialmente na Zona Oeste, onde milicianos e traficantes disputam território. No começo de outubro, três médicos de São Paulo que estavam na cidade para participar de um congresso foram executados em um quiosque na Barra da Tijuca. A Polícia Civil acredita que os homicídios ocorreram porque um dos homens foi confundido por integrantes do Comando Vermelho com o miliciano Tairon. Pouco antes, imagens de drones mostraram integrantes de facções recebendo treinamento de guerra no Complexo da Maré, na Zona Norte.
Após os ataques, o governo federal passou a discutir medidas de enfrentamento às organizações criminosas com o governo do Rio — agentes da Força Nacional já reforçam o policiamento na capital fluminense. Uma primeira iniciativa será o Gabinete Institucional de Combate à Lavagem de Dinheiro no Rio de Janeiro, que visa a promover o rastreamento das verbas das facções. A medida foi elogiada pelo criminalista Celso Vilardi, professor da pós-graduação em Direito Penal Econômico da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.
"O rastreamento financeiro das organizações criminosas, principalmente nesse caso específico de organizações criminosas no Rio de Janeiro, com o envolvimento de milícias, é a única forma efetiva de investigar. Na verdade, o Brasil está extremamente atrasado nisso. Embora a nossa legislação seja de 1998, não houve grandes investigações para desmantelar as grandes organizações criminosas brasileiras. Há alguns casos pontuais, mas não existe uma força-tarefa, que deveria existir, para desestruturar o crime organizado. Por isso, essa medida é muito bem-vinda. Embora seja uma medida que venha com muito atraso, mas antes tarde do que nunca."
Antes disso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública havia lançado o Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas. Com orçamento de R$ 900 milhões, o plano consiste em um conjunto de ações com o objetivo de viabilizar uma visão sistêmica das organizações criminosas; valorizar os recursos humanos das instituições de segurança pública; e fortalecer a investigação criminal e a atividade de inteligência, a fim de desarticular e descapitalizar os grupos. Porém, a pasta ainda não explicou como essas medidas serão implementadas.
Diante de crimes de grande repercussão, a solução política mais comum é propor o endurecimento da legislação penal. E não é diferente desta vez — segundo o jornal O Globo, o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), vai apresentar ao Congresso um projeto de lei para proibir a progressão do regime de cumprimento de pena para quem portar armas de guerra; cobrar taxas de serviços públicos como água, luz, transportes e telecomunicações; e for acusado de lavagem de dinheiro de organização criminosa.
Nessa mesma linha, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, disse em entrevista ao canal de tevê GloboNews que é favorável ao fim da progressão do regime de cumprimento de pena. Dino contou que pediu aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), respectivamente, a análise de projetos que extinguem o benefício ainda neste ano.
A propósito, o Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade de regra semelhante, prevista na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990). A corte invalidou o parágrafo 1º do artigo 2º da norma — que estabelecia que a pena seria cumprida integralmente em regime fechado — e cristalizou o entendimento na Súmula Vinculante 26.
O endurecimento da legislação penal vem sendo impulsionado desde a promulgação da lei de 1990, conforme destaca Victória-Amalia de Sulocki, professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ela afirma que o aumento da criminalidade e da violência, sobretudo por causa da guerra às drogas — na verdade, "guerra aos pobres" —, legitimou tal processo. Só que ele é ineficaz, segundo a professora.
"As propostas de endurecimento penal, com aumento de penas, retirada de direitos ou tornando mais rigorosa a forma de execução da pena, são uma falácia. Trata-se de um discurso político que vende vento, pior, furacão, pois quanto maior a população carcerária nas condições precárias do sistema penitenciário, maior a criminalidade."
Mesmo sem evidência empírica de que o aumento abstrato de penas reduz a prática de crimes, parlamentares continuam apresentando projetos de lei para elevar penalidades, de acordo com André Pacheco Teixeira Mendes, professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, em entrevista à ConJur.
Mendes é autor do livro Por que o legislador quer aumentar penas?: populismo penal na Câmara dos Deputados. Análise das justificativas das proposições legislativas no período de 2006 a 2014 (Del Rey). Para a obra, o professor analisou 191 PLs apresentados nesses oito anos que propunham aumento de penas. Em 48,16% dos casos, os autores dos projetos justificaram a medida com o argumento de que ela reduziria a prática de crimes, enquanto 31,93% argumentaram que a elevação das punições pune mais adequadamente os praticantes dos delitos. E 27,22% dos PLs não fizeram referência a finalidades da pena, "o que revela um empobrecimento do debate parlamentar", segundo o professor.
Essas medidas são um reflexo de como o populismo penal se manifesta no Legislativo, destaca Mendes. Menos de um quinto dos PLs apresentou dados ou estudos que justificassem as elevações das penalidades. Para o professor, isso confirma o processo de desestatisticalização do populismo penal, a ausência de conhecimento técnico e a supremacia do senso comum. Um aspecto positivo, na visão de Mendes, é que somente dois dos 191 projetos foram aprovados. Porém, isso não foi tão importante para os deputados que os apresentaram — o que vale é criar a imagem de que eles são duros com determinado tipo de crime, analisa o professor da FGV.
Sempre o mesmo caminho
Os especialistas ouvidos pela ConJur opinam que, para ser eficaz, o combate à criminalidade organizada deve se dar por meio do aprimoramento da investigação e de políticas públicas de inclusão social.
O criminalista Técio Lins e Silva, ex-secretário de Justiça do estado do Rio, diz que é preciso mudar a forma como se pensa a repressão na Justiça Criminal. Segundo o advogado, a pena de prisão, na grande maioria das vezes, serve apenas para "aumentar as injustiças às quais os pobres são submetidos".
"A pena privativa de liberdade serviu como humanização da repressão penal quando a regra eram a pena de morte, a tortura e os castigos cruéis. Somente serviu para isso, e tem a idade de pouco mais de 200 anos. Hoje já não se acredita mais nesse método falido de punição e encarceramento. O mundo mudou, mas há os que não acompanharam essa mudança vertiginosa acontecida nos últimos tempos. Uma coisa é a repressão penal inteligente, outra coisa, a punição burra", avalia Lins e Silva.
As alterações legais que resultam na redução dos conflitos normalmente ocorrem fora da esfera criminal, ressalta o advogado Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
"As ações que ajudam a reduzir com efetividade as conflitividades normalmente se concentram mais na esfera executiva do que na legislativa. Algumas leis podem dar maior visibilidade para um ou outro conflito social — pensemos nas questões que envolvem raça e gênero, por exemplo. Mas são políticas públicas, pensadas específica e setorialmente, ou seja, para determinados conflitos em determinados locais, que ajudam realmente na prevenção da violência. Dar suporte para que ex-apenados sejam inseridos no mercado de trabalho, por exemplo, é uma medida altamente eficaz para reduzir reincidência; ter política de manutenção de jovens na escola, contra a evasão escolar, invariavelmente opera positivamente como fator impeditivo de ingresso em carreiras criminais."
Orlando Zaccone, delegado de Polícia Civil do Rio e integrante do Movimento Policiais Antifascismo, afirma que o número de presos não tem a ver com índices de delitos, e, sim, com a política criminal adotada pelo Estado. "Ou seja, se um país tem muitos presos e outro país tem poucos presos, isso não significa que no primeiro país há mais crimes, e no segundo, menos crimes. O que está demonstrado é que um país optou pelo encarceramento como ferramenta — algo completamente ineficaz para os fins que ele anuncia, que é a redução do crime, da violência".
Para Zaccone, medidas eficazes de combate à criminalidade são as que atacam os problemas sociais que impulsionam os delitos. No caso das milícias cariocas, por exemplo, seria positivo se o Estado obrigasse empresas concessionárias a operar linhas de transporte não lucrativas, de forma a evitar a operação de vans ilegais, e se assumisse a comercialização de gás com preço tabelado, para impedir que as companhias do ramo o vendam com ágio porque são obrigadas a pagar uma taxa às facções.
As políticas criminais efetivas só produzem resultados no médio a longo prazos, aponta Victória-Amalia de Sulocki. Práticas efetivas, segundo ela, são a instituição do ensino integral em todas as escolas a partir do ensino fundamental; o controle rigoroso da circulação de armas; e muito investimento em inteligência policial.
"Mais inteligência e menos 'caveirão'. Isso significa desmilitarizar a ideologia da segurança pública, ou seja, deixar de ter inimigo para ser eliminado — não à toa usam o termo 'dano colateral' quando morrem crianças. Não é um problema ter uma polícia militar, o problema é ter uma polícia militar, civil ou força nacional com ótica de guerra", opina a professora da PUC-Rio.
Estado precisa agir
Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, afirma que os progressistas precisam pensar em políticas de segurança pública que produzam resultados no presente, e não só no longo prazo.
"Penso em parte como Steve Pinker (O novo iluminismo). A esquerda (progressistas em geral) mantém os olhos no horizonte, que, por definição, nunca é alcançado. Segurança é uma das políticas que precisam ser pensadas não apenas com os olhos no horizonte. Segurança exige olhar urgentemente para o imediato, para o perfil demográfico integralmente: 1) O que fazer com os jovens que não entraram no crime; 2) O que fazer com os que entraram; 3) O que fazer com os que não entraram ainda; 4) O que fazer com os que não são jovens e são sujeitos à violência do crime; e 5) O que fazer com a população por inteiro submetida à violência do crime agora. Hoje."
O jurista destaca que "a esquerda tem uma visão de segurança como violência contra a cidadania" e "prefere não agir para proteger a cidadania a agir contra quem entregou sua cidadania para o crime".
"Essa inação, que respeita a dimensão humana de quem adere ao crime, de outro lado não respeita a dimensão humana de quem resiste ao crime. É preciso superar essa visão, aceitando que o Estado falhou e que é preciso conter a violência decorrente da falha do Estado sem reproduzi-la de outra forma, sem fazer escalar a decadência das relações sociais e entre as instituições (de segurança) e a sociedade", opina Streck.
Ele, no entanto, não sugere medidas de combate à criminalidade organizada, pois entende que essa responsabilidade é do governo. "E o governo não costuma ouvir ninguém."