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porto velho, quarta-feira 27 de novembro de 2024
BRASIL: A perplexidade com que a sociedade brasileira tem recebido os recentes e incisivos julgamentos das turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça tem levantado no ministro Marcelo Navarro Ribeiro Dantas um questionamento: será que os que as contestam sabem que se tratam de direitos previstos já nas leis e na Constituição do Brasil?
São garantias que todo cidadão goza e que, por um motivo ou outro, por vezes não saíam do papel. Se agora o STJ decidiu dar-lhes efetividade, tanto melhor. Nesses casos, aponta o ministro, não há novidades. “Se há alguma coisa de novo é que finalmente se está levando a Constituição a sério”, diz, em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2022, que será lançado pela ConJur.
Integrante da 5ª Turma do STJ, ele elogia a harmonização não planejada que tem havido com a 6ª Turma e relata elogios sobre a mudança na forma como se deve aplicar o Direito Penal e Processual Penal no Brasil. A ideia é simples, mas de difícil execução: é possível ter eficiência na persecução penal sem necessariamente desrespeitar garantias fundamentais.
"Não adianta a gente falar que eficiência é prender ou condenar mais gente. Eficiência é prender e condenar mais culpados. E se você tem um nível de condenação alto e no meio tem muita gente inocente? Não faz sentido. A gente precisa de um processo penal que preserve as regras do jogo, que são principalmente as regras da Constituição e, obviamente, as regras da lei penal e processual penal. Buscar a eficiência deve ser uma meta no Judiciário, mas essa eficiência não pode sacrificar os direitos básicos do cidadão", defende.
Leia a entrevista:
ConJur — Há uma evidente mudança de postura nas turmas criminais do STJ. Se antes uma poderia ser taxada de mais legalista ou garantista que a outra, hoje nota-se um alinhamento de posições. A que se deve essa alteração?
Ribeiro Dantas — Nada disso foi planejado. Aconteceu naturalmente, com a renovação do tribunal. Estamos sempre em contato via grupos de aplicativos de mensagem. Quer dizer, de alguma maneira você está sempre conversando com os colegas, e se sai uma decisão no Supremo ou um caso novo, alguém coloca no grupo para compartilhar. Então existe mais essa interação. E também pela questão das afetações. Nós nos adaptamos a esse sistema, que eu acho muito bom: toda vez que temos alguma coisa que pode discrepar do que se fez antes ou, quando há uma percepção de que o entendimento das turmas pode ser a hora de mudar, nós levamos para a seção. Quando um ministro traz uma novidade, ele mesmo, ao colocar no sistema, faz um autodestaque, ou seja, chama a atenção dos colegas para aquele processo, não porque haja algum problema nem nada, mas porque está incluindo algum fator decisório novo que talvez não seja exatamente na linha do que era feito antes. E isso é interessante, primeiro porque é uma honestidade intelectual da parte de quem leva o argumento. E também para você ver se seria voto vencido, ou melhorar um argumento. Então esse uso mais intensivo dos sistemas eletrônicos ele acaba fazendo com que haja uma maior harmonização.
ConJur — As estatísticas levantadas pelo Anuário da Justiça mostram uma aproximação de entendimentos entre as duas turmas.
Ribeiro Dantas — Essa harmonização é importante porque isso é o que hoje se prega na doutrina processual. O Código de Processo Civil diz expressamente "os tribunais organizarão a sua jurisprudência de modo a mantê-la íntegra, coerente e estável". E isso, embora não conste no Código de Processo Penal, pode ser aplicado porque não colide com nenhuma disposição em contrário e nem com nenhum princípio. Talvez seja ingênuo pensar assim que, só por causa de um dispositivo da lei processual, isso possa mudar toda a nossa cultura de sermos rebeldes aos nossos procedentes. O juiz brasileiro tem uma cultura em que tudo é em nome da liberdade de julgar, e cada um continua produzindo as decisões conforme melhor lhe parece. Nós temos que criar essa cultura da estabilidade, da coerência e da integridade da jurisprudência. Eu fico então muito satisfeito que as turmas criminais estejam mais alinhadas. Isso é importante porque, se elas estivessem desalinhadas, nós estaríamos à mercê da sorte. Claro que as turmas existem para que haja entendimentos diferentes e para que haja debate, mas não podem estar em total descompasso. Fico muito feliz em saber que estatisticamente isso está se comprovando.
ConJur — Os efeitos são claramente positivos.
Ribeiro Dantas — Eu acho que ambas as turmas da 3ª Seção estão fazendo um trabalho bem interessante. Já ouvi isso de alguns penalistas e de alguns processualistas penais, reconhecendo que o setor de jurisprudência criminal do STJ está mudando a maneira como se aplica o Direito Penal e Processual Penal no Brasil, e eu fico muito satisfeito de estar participando dessa área do tribunal nesse momento tão rico. É importante, também, a construção de uma convivência muito harmônica, muito agradável entre os ministros da 3ª Seção e, principalmente, entre os ministros da 5ª Turma. Nós gostamos de estar no nosso ambiente de julgamento e nos respeitamos muito como colegas. Isso contribui e tem um valor. É de um aspecto meta jurídico, mas que, com certeza, contribui para o andamento do nosso trabalho.
ConJur — Ambas as turmas têm julgado no sentido de garantir direitos fundamentais em relação a ações policiais. A questão da invasão do domicílio sem autorização judicial e do correto reconhecimento pessoal têm sido balizadas a cada caso. Como equilibrar esses entendimentos sem passar a ideia de que se está inviabilizando o trabalho policial?
Ribeiro Dantas — Nós achamos que é, sim, possível ter eficiência no processo penal respeitando as garantias da Constituição. Até porque não adianta a gente falar que eficiência é prender ou condenar mais gente. Eficiência é prender e condenar mais culpados. E se você tem um nível de condenação alto e no meio tem muita gente inocente? Não faz sentido. A gente precisa de um processo penal que preserve as regras do jogo, que são principalmente as regras da Constituição e, obviamente, as regras da lei penal e processual penal. Buscar a eficiência deve ser uma meta no Judiciário, mas essa eficiência não pode sacrificar os direitos básicos do cidadão. Por que é que a inviolabilidade do domicílio existe para o cidadão de classe média e alta, mas não para o pobre que mora em comunidade, porque a polícia mete o pé na porta dele e está já dentro de casa? Então a questão aí não é dizer que inviabilizou a investigação policial. Isso está na constituição. O direito à inviolabilidade do domicílio está na constituição. A jurisprudência não está fazendo nada de novo. Se há alguma coisa de novo é que finalmente se está levando a Constituição a sério. Eu acho que uma grande parte dessas perplexidades que às vezes se tem é que as pessoas nunca pensaram nisso, nunca pararam para ver que são coisas que estão garantidas desde sempre, às vezes até antes da Constituição de 1988, mas que por muitas vezes ficaram apenas no papel. Se agora a Justiça está realmente colocando essas garantias para valer, acho que isso é um avanço.
ConJur — É positivo, de uma forma geral.
Ribeiro Dantas — O caso por exemplo do uso de câmeras para filmar a ação da polícia e que vários estados do Brasil estão fazendo isso. A tecnologia avançou e a câmera é pequena o suficiente para se usar na lapela e barata o suficiente para que não seja de outro mundo. Isso é uma garantia para as pessoas e para os policiais também. Porque os policiais também sofrem quando exercem a sua atividade e, muitas vezes, fica a palavra do policial contra a palavra da pessoa que foi parada. Está tudo filmado e todos ficam garantidos. São coisas que finalmente estão acontecendo e que deveríamos ter discutido isso muito antes. Se agora que estamos discutindo, então melhor. Isso vai ter um efeito também na qualidade do trabalho da polícia, porque ela não vai ficar mais só atrás de perseguições ou de entrar na casa de alguém que supostamente tenha praticado algum ato delitivo. A polícia vai ter que se dedicar a um trabalho de investigação sério, vai ter que se aperfeiçoar com cursos sobre investigação, sobre interrogatório, vai poder se dedicar a investigar um grande crime e não apenas pegando os pequenos delinquentes. Acho que é isso que a sociedade quer.
ConJur — Não foram poucas as vezes que, no STJ, se apelou para um maior respeito à jurisprudência formada. Ainda é possível fazer algum tipo de apelo para os tribunais locais?
Ribeiro Dantas — Pode ser alguma ingenuidade minha de achar que em algum momento vamos conseguir uma adesão maior aos nossos precedentes. Eu preciso acreditar nisso, porque é uma cultura em construção. Volta e meia algum profissional do Direito, algum autor que escreve um artigo ou um livro acerca dos precedentes e diz: “Olha, aqui no Brasil os precedentes são diferentes dos precedentes nos Estados Unidos, na Inglaterra; aqui no Brasil criaram o precedente fast food; aqui se quer fazer um precedente no presente para resolver situações do futuro”. Tudo bem. O que existe é que eles vêm de uma cultura secular de uso dos precedentes que nós não temos. Embora tenha os assentos da Casa de Suplicação, os pré-julgados antigos e as súmulas, apesar disso a nossa cultura segue sendo a cultura da liberdade de julgamento, da liberdade de cada juiz julgar como melhor lhe parece. E a questão da formação de um sistema brasileiro de precedentes começa a partir da Emenda Constitucional 45, de 2004. Então é algo novo. Alguns tribunais têm uma dificuldade maior em aceitar, mas eu quero crer que os juízes vão começando a se informar com novas ideias. Hoje isso começa a ser ensinado desde a faculdade e, naturalmente vai melhorar. Talvez não com a rapidez que nós desejaríamos, mas a tendência é melhorar. Não sei se eu sou um pouco mais esperançoso, ou mais ingênuo, mas é isso.
ConJur — A 5ª Turma tem dois precedentes muito relevantes sobre apelação contra condenação do tribunal do júri contrária às provas. Um deles trata sobre como analisar essa apelação e o outro é sobre o veto à condenação com base só no inquérito. Por que esse tema segue tormentoso no Brasil?
Ribeiro Dantas — Houve uma pacificação interna no STJ pela 3ª Seção. Essa absolvição supostamente contrária à prova dos autos é a chamada absolvição por clemência. Na doutrina, há uma divisão. Tem autores que dizem que ela é uma decorrência lógica da modificação que foi feita no Código de Processo Penal em 2008 [Lei 11.689/2008]. Antes, você tinha aquela série interminável de quesitos que podiam se desdobrar em tantas outras séries dependendo de cada pequena característica do delito. Aquilo era muito complicado. O jurado, no geral é uma pessoa comum do povo e ele se enrolava. Então o legislador de 2008 reduziu os quesitos para cinco, sendo que três deles eu pessoalmente chamo de quesitos principais: materialidade de que o fato aconteceu, autoria — se o réu fez mesmo ou ao menos atuou como partícipe — e se ele merece ser absolvido. A pergunta é: esse terceiro, se o réu merece ser absolvido, precisa estar em harmonia ou não com os dois primeiros? E aí nós temos duas normas principais: uma é o Código de Processo Penal, que diz que é possível haver apelação referente ao decido pelos jurados se for manifestamente contrária à prova dos autos. E nós temos um dispositivo da Constituição que diz que o júri é mantido com as seguintes características: a soberania de vereditos. Então os vereditos são soberanos e é por isso que o tribunal não pode reformar. Então essa questão segue tormentosa. Internamente, ele está pacificada. Mas no Supremo isso não foi decidido. Esse é um tema que está aqui no STJ pacificado, mas temos que ver ainda o que o Supremo vai decidir.
ConJur — E o caso do veto à condenação com base só em provas colhidas no inquérito?
Ribeiro Dantas — A questão é o chamado standard da prova. Esse é um tema que está há muito tempo em outros países, principalmente nos de tradição anglo-saxônica. Usamos o patamar de que, para uma condenação pelo júri, uma simples prova colhida num inquérito sem contraditório não deveria surtir o mesmo efeito. Também temos colocado que uma coisa é o nível de provas que se exige para pronunciar ou despronunciar um réu, mas a prova condenar deve ser maior. Eu acho que o Direito Processual Penal no Brasil está deslanchando, justamente por esse nível de detalhe a que nós estamos chegando. Não temos um código novo. Ele não aconteceu na esfera do processo penal como aconteceu na esfera do processo civil. Ou seja, não houve uma renovação completa, mas a doutrina e a jurisprudência estão a todo vapor tentando suprir as possíveis deficiências da legislação.
ConJur — Há quem defenda o tribunal do júri como algo ultrapassado e que não traz uma verdadeira justiça. Em sua opinião, deve ser mantido como é?
Ribeiro Dantas — - Já tiveram alguns aprimoramentos. Essa lei de 2008 mudou muito como o júri era feito. A discussão de ser contra ou a favor, a meu ver, é uma discussão inútil, porque o júri é consagrado constitucionalmente e, para muitos autores, ele está no núcleo imodificável da Constituição, então ele é uma cláusula pétrea. Não adianta alguém vir amanhã com uma emenda para abolir o júri, porque provavelmente o Supremo declararia inconstitucional. Então o júri, pelo menos com aqueles quatro lineamentos básicos que a Constituição traz, dos crimes dolosos contra a vida, supremacia dos vereditos, entre outros, vai ter que continuar existindo. É melhor tentar debater como melhorar, isso sim. E isso se pode fazer através de aperfeiçoamentos providenciais em cima da legislação.