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porto velho, terça-feira 7 de outubro de 2025
Por Dr. Fadricio Santos
A cena é recorrente: uma celebração, um brinde, a confiança depositada em um produto adquirido legalmente. O que se segue, no entanto, é a crônica de uma falha anunciada. A contaminação de bebidas por metanol não é um acidente, mas o sintoma agudo de uma patologia que corrói a cadeia de consumo e a estrutura de fiscalização estatal. Este evento trágico expõe uma teia de responsabilidades que se estende do fabricante clandestino ao comerciante que visa o lucro fácil, culminando na inércia do Poder Público. A análise jurídica desse fenômeno revela uma responsabilidade tripartite, cujos contornos são claramente definidos pela legislação e pela jurisprudência.
1. O Consumidor: Epicentro da Tutela Jurídica e Vítima da Vulnerabilidade
No centro desta análise está o consumidor, figura para a qual o ordenamento jurídico brasileiro erigiu um sólido sistema de proteção. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) parte do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado (art. 4º, I) e, como contraponto, estabelece o dever de segurança como um pilar da relação de consumo. Ao adquirir uma bebida, o consumidor tem a legítima expectativa de que ela seja segura para o consumo.
A presença de metanol quebra drasticamente essa expectativa, caracterizando o que a doutrina e a lei denominam fato do produto (art. 12 do CDC). O produto não é apenas impróprio para o consumo; ele é perigoso, defeituoso em sua essência por não oferecer a segurança que dele se espera. O dano, neste caso, é presumido (in re ipsa).
A jurisprudência, como na Súmula n. 28 do TJ-RS, é sensível a essa violação, ao firmar que "a configuração do dano moral independe da efetiva ingestão do corpo estranho ou do alimento contaminado". A simples exposição ao risco, a quebra da confiança e o abalo psicológico decorrente da descoberta da contaminação já são suficientes para configurar o dever de indenizar.
2. A Cadeia de Fornecimento: Da Produção Clandestina à Responsabilidade no Balcão
O CDC estabelece um regime de responsabilidade solidária entre todos os participantes da cadeia de fornecimento (art. 7º, parágrafo único, e art. 25, § 1º). Isso confere à vítima o direito de acionar qualquer um dos envolvidos, ou todos eles, pela reparação integral do dano.
O Fabricante: A responsabilidade primária é do fabricante.
Em casos de falsificação, a identificação pode ser complexa, mas não impossível. A investigação criminal tem o papel de desarticular essas organizações, permitindo a responsabilização civil e penal dos produtores.
O Comerciante (Revendedor Final): A figura do comerciante é crucial.
Embora sua responsabilidade seja, em regra, subsidiária, ela se torna direta e principal em cenários como este. O artigo 13 do CDC é taxativo: o comerciante responde quando o fabricante não pode ser identificado, situação padrão em produtos clandestinos. Mais do que isso, ao adquirir e vender produtos sem procedência comprovada, sem documentação fiscal e por valores muito abaixo do mercado, o comerciante assume conscientemente o risco. Ele rompe a rastreabilidade do produto e falha em seu dever mínimo de diligência, tornandose um agente direto na disseminação do risco e, portanto, plenamente responsável pelos danos causados.
3. O Estado no Banco dos Réus: O Preço da Omissão Fiscalizatória
Quando a autorregulação do mercado e a responsabilidade dos fornecedores falham, a atenção se volta para o guardião final da saúde pública: o Estado. O artigo 196 da Constituição Federal não deixa dúvidas sobre o dever estatal de garantir a saúde mediante políticas que reduzam o risco de doenças e outros agravos. A fiscalização sanitária é a materialização desse dever.
A responsabilidade do Estado por omissão é matéria pacificada. Embora tradicionalmente tratada como subjetiva, exigindo a prova da falha do serviço (faute du service), a jurisprudência mais moderna, como a sinalizada pelo TRF da 3ª Região na ApCiv 50049539420234036110, inclina-se para a responsabilidade objetiva mesmo em casos de omissão, uma vez demonstrado o dever de agir. A falha se manifesta na insuficiência de fiscais, na falta de operações coordenadas ou na inércia diante de denúncias.
O Supremo Tribunal Federal, no emblemático RE 452438, já admitiu a responsabilidade do Poder Público em um caso de intoxicação por metanol, vinculando a omissão na fiscalização ao dano sofrido pela vítima. Essa fiscalização é uma competência compartilhada pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), que engloba a ANVISA (nível federal), as vigilâncias estaduais e as municipais. A falha em qualquer um desses níveis pode acarretar a responsabilização do respectivo ente.
Ademais, o dever do Estado não se esgota na fiscalização. O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1531382, foi claro ao afirmar que a simples apreensão de um produto não exime o Estado do dever de informar. A comunicação ativa e massiva sobre os riscos é uma obrigação legal (art. 10, § 3º, CDC), e sua ausência constitui mais uma faceta da omissão estatal.
4. Quantificando a Devastação: Do Dano Individual ao Dano Moral Coletivo
A reparação devida às vítimas deve ser integral, abrangendo todas as dimensões do prejuízo.
Danos Individuais: Danos Materiais: Incluem os danos emergentes (todas as despesas médicas, hospitalares, cirúrgicas, medicamentos, tratamentos de reabilitação e sessões de terapia) e os lucros cessantes (a renda que a vítima deixou de auferir devido à incapacidade para o trabalho). Em caso de óbito, essa verba se converte em pensão mensal para os dependentes.
Danos Morais e Estéticos: O dano moral decorre da violação à dignidade, à integridade física e psíquica, e do sofrimento atroz causado pela intoxicação e suas sequelas, como cegueira e danos neurológicos. O dano estético, por sua vez, é uma categoria autônoma e refere-se a qualquer transformação física permanente e visível que cause constrangimento à vítima.
Danos Coletivos: Uma contaminação em massa transcende a esfera individual. Ela gera um dano moral coletivo, que é a lesão ao sentimento de segurança e à confiança de toda a sociedade no mercado e nas instituições. Esse dano é objeto de Ações Civis Públicas, que visam não apenas uma compensação financeira destinada a fundos de direitos difusos, mas também a imposição de obrigações para forçar uma mudança de postura dos responsáveis e do próprio Estado.
Conclusão
A crise do metanol é um retrato contundente de como a busca pelo lucro fácil, aliada à omissão estatal, pode ter consequências fatais. A legislação brasileira fornece as ferramentas para uma responsabilização exemplar de todos os envolvidos na cadeia de eventos. A luta por justiça, nesse contexto, transcende a reparação financeira; é um ato de reafirmação da dignidade humana e um basta à banalização da vida em nome do lucro e da inércia. É uma demanda por um mercado que respeite a segurança e por um Estado que cumpra, de fato, seu dever de proteger.